Cannes: Era Uma Vez um Gênio - Crítica do Chippu

Cannes: Era Uma Vez um Gênio - Crítica do Chippu

Novo filme de George Miller é lindo, triste e diferente de tudo em sua filmografia

Guilherme Jacobs
21 de maio de 2022 - 8 min leitura
Notícias

CANNES - Tilda Swinton interpreta uma narratóloga (eu nem sei se essa palavra existe em português) em Era Uma Vez um Gênio, o novo filme de George Miller pelo qual parece estarmos esperando há três mil anos. De cara, fica claro o propósito do cineasta com a obra que ele trouxe para o Festival de Cannes este ano. Chegou sua vez de celebrar histórias. Esse é um dos temas favoritos de diretores e roteiristas pelo mundo todo e Miller é o mais novo membro deste clube com um drama adulto voltado para o propósito dos contos nos quais eu e você nos apoiamos no nosso dia a dia. Eles dão significados às coisas. São nossas maneiras de explicarmos a realidade. Eles são a própria vida, argumenta o homem que um dia brilhou na estrada de fúria.


Swinton interpreta Alithea, uma derivação da palavra aletheia (grego para verdade descoberta). Sem pais, filhos ou irmãos, ela se diz perfeitamente sozinha. Brilhante em seu trabalho de analisar e palestrar sobre narrativas de todo o mundo, ela busca encontrar os pontos em comuns na mitologia e cultura de diferentes países em busca de, bom, descobrir verdades. O que ela não esperava era descobrir que Djinns são reais, e de fato oferecem três desejos, quando ela abre a garrafa contendo um desses seres mágicos, aqui interpretado por Idris Elba. Swinton e Elba são perfeitamente escalados em ambos papéis. Anda bem, porque Era Uma Vez um Gênio é essencialmente uma conversa entre esses dois personagens. Cada um conta sua história.


Este papel dá a Swinton mais uma chance de exibir seus maiores talentos - criar personagens profundamente idiossincráticas com uma dose de humor trágico (ou será tragédia cômica?). Apesar de ter várias falas, podemos inferir o necessário sobre Alithea apenas pelo olhar e expressões faciais exibidas pela atriz, particularmente enquanto reage às crônicas do poderoso e gigante Djinn (espere pra ver o tamanho de Elba nisso aqui). A satisfação de Alithea em sua vida não parece é falsa. Continuar assim não vai, necessariamente, ser impossível para ela. Mas o roteiro, escrito pelo diretor e Augusta Gore com base no conto de A.S. Byatt, também enxerga essa plenitude como um mecanismo de defesa. Quando chega a vez dela de tomar o holofote, Swinton dosa os discursos sobre o passado da protagonista com um suave tom melancólico revelando a solidão e o coração partido por trás desse exterior tão bem-resolvido. Histórias, o Djinn percebe, são a maneira da mulher de preencher um vão em sua alma. Talvez ela não seja a única fazendo isso.


Era Uma Vez um Gênio aponta histórias como manifestações, ou revelações, de desejos. Quando contamos uma, quer saibamos ou não, mostramos nosso íntimo, nosso coração, nossa cosmovisão, nossas crenças e filosofia. Nossas ânsias. Elas são nossas maneiras de conhecer pessoas e nos fazer conhecidos. Semelhantemente, um desejo feito para um Djinn revela a história de quem o invocou. O que ele quer? O que o move? Com o que sonha?


O Djinn de Elba é o maior narrador deste longa-metragem, permitindo ao ator britânico explorar seu imenso carisma. Isso é necessário. Seu personagem é o mais presente e o mais falante em toda a obra, e o ator precisa (e consegue) ser cativante, charmoso, misterioso, suspeito e confiável para não só prender nossa atenção, como para derrubar as barreiras de sua nova mestre. Ele deve conceder os três desejos para, enfim, ser livre (adivinhe há quanto tempo ele espera por isso), mas aqui encontra uma pessoa que, além de não desejar nada em particular como amantes ou dinheiro, conhece os mitos de Djinns trapaceiros e enganadores, e sabe como a realização dessas vontades através de mágica normalmente é usada em narrativas de alerta. Não é preciso avisar Alethia para tomar cuidado com o que deseja. Como, então, fazê-la confiar em sua intenção ao realizá-los senão através de histórias sobre seu passado?


Assim, o Djinn fala sobre as três vezes nas quais foi aprisionado na garrafa, começando do romance de Salomão e a Rainha de Sabá e indo até outra história de amor - uma envolvendo ele mesmo. Os detalhes são melhor guardados para o cinema, mas esses flashbacks são lindos, trágicos e visualmente espetaculares.


Miller usa muito CG na criação dessas viagens ao passado e no uso dos poderes do Djinn. Os efeitos especiais podem parecer ruins à primeira vista, já que nada é muito realista, mas Miller não parece procurar por isso. Pelo contrário, a artificialidade contribui com a proposta de transformar o filme numa fábula (um conto de fadas, Alithea diz para a audiência), de capturar o sentimento de estar num sonho ou devaneio. Em momento algum, Miller busca dar a impressão de que algo ali é real. Esse é um filme de fantasia, e somos convidados a nos deixar levar pela magia com um espetáculo de cores, sons (a trilha sonora de Junkie XL já é uma das melhores do ano).


As histórias do Djinn são o ponto mais alto deste ótimo filme, com destaque especial para a última - uma tragédia shakespeariana capaz de mover até o mais frio coração. Depois delas, porém, Era Uma Vez um Gênio revela um novo truque. Ele associa magia à tecnologia. O longa trata os avanços tecnológicos como responsáveis pelo desaparecimento do fantasioso em nossa vida, traçando uma linha de causalidade entre os ruídos audiovisuais e eletrônicos do nosso dia a dia com a morte das lendas. Não há mais espaço para o desconhecido. O paralelo é interessante, mas não contém a mesma energia engajadora dos primeiros 90 minutos, e com isso seu final se perde um pouco no ritmo, introduzindo de última hora alguns comentários sobre nacionalismo e racismo nunca muito aprofundados.


É comum, porém, ver ótimas histórias abusar de sua estadia e não saberem exatamente quando terminar. Mas como Era Uma Vez um Gênio nos ensina ao nos levar por uma jornada na qual somos ensinados como alguns desejos são melhores quando não são totalmente realizados, e como histórias de solidão podem ser a chave para, justamente, encontrar companhia. É um drama honesto, sem um pingo de ceticismo. Também é mais um filme reforçando o quão diverso e talentoso seu diretor é - não há outro como este em sua filmografia. O gênio saiu da garrafa.


4/5

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