The Card Counter - Crítica do Chippu

The Card Counter - Crítica do Chippu

Oscar Isaac aposta sua alma na nova obra de Paul Schrader

Guilherme Jacobs
17 de setembro de 2021 - 8 min leitura
Notícias

"Um ótimo jogador de pôquer consegue ver sua alma," explica William Tell, personagem interpretado por Oscar Isaac em The Card Counter. Não adianta tentar escondê-la com óculos escuros, fones de ouvidos ou capuz, os olhos de um veterano vão penetrar sua pele, ossos e músculos até enxergar sua essência. Sendo um calvinista, Paul Schrader, cujo roteiro do seminal Taxi Driver - de Martin Scorsese - deu ao cinema Travis Bickle, está preocupado com almas. Em seu novo filme como diretor e roteirista, essa preocupação toma conta de sua mente como uma nuvem carregada bloqueando o sol em volta do seu protagonista.


Tell é um ex-presidiário, ex-militar capaz de contar cartas, manipular jogos e ler pessoas. Um homem cujas emoções estão apertadas como um nó e escondidas atrás de uma fachada aparentemente impenetrável - mas com uma brecha grande o suficiente para vermos suas inseguranças, solidão e tristeza - este antigo interrogador de prisioneiros descobriu sua paixão por rotinas; a mesma cama, a mesma privada, o mesmo teto. Agora, ele viaja de cassino em cassino, apostando em 21 ou Texas Hold'em e saindo antes de ganhar demais para não levantar suspeitas, cobrindo os móveis dos seus quartos de hotéis com lençóis brancos para replicar a sensação de mesmice e falta de identidade nos arredores.


Isaac já interpretou alguns personagens assim - O Ano Mais Violento e Tríplice Fronteira vem à mente - mas nunca com tanta frieza. Na página de Schrader e nas mãos do ator, William é um homem quebrado por conta dos atos de seu passado, mas ciente de seu próprio estado. Como ótimo jogador de pôquer, afinal, ele vê almas. Por que não veria a sua? O protagonista é um mistério visível, um grito segurado na garganta, desejando sair e finalmente pedir por resgate e redenção, temas comuns às criações do diretor de Fé Corrompida. Então, em apenas alguns dias, a rotina desta alma é interrompida por duas figuras, cada uma com uma proposta.


La Linda (Tiffany Haddish), uma mulher cujo enorme carisma e senso de humor escondem sua visão de águia, quer patrociná-lo e transformá-lo num profissional de pôquer. Cirk (Tye Sheridan), um jovem cujos passos estão seguindo uma direção semelhante aos de William em sua juventude, oferece ao protagonista uma chance de executar vingança contra o Major Gordo (Willem Dafoe), responsável por tragédias na vida de ambos. Haddish, veterana de comédia, é uma escolha ousada de elenco. Uma aposta, melhor dizendo. O lucro, entretanto, se torna claro ao vermos como ela usa a acidez do humor para desarmar os homens ao seu redor, sem medo de expor as fragilidades da sua masculinidade. Sheridan, por sua vez, caminha na tênue linha entre a inocência do começo da vida adulta e a arrogância de pensar ter todas as respostas. É a atuação mais emocionalmente complexa do ator, sua melhor desde que foi descoberto em Amor Bandido.


Agora, Tell pode deixar seu passado para trás de uma vez por todas ou revivê-lo numa tentativa de matá-lo. Sua escolha inicial é de fugir do desejo vingativo, tentando fazer o garoto enxergar este caminho como uma armadilha e poupá-lo de cometer os mesmos erros. Talvez William não consiga resgatar sua alma, mas sim a de Cirk. Ou talvez, redimindo seu novo companheiro de viagem no circuito de cassinos, ele encontre salvação.


A jornada dos três vai de cidade em cidade, de mesa de apostas em mesa de apostas. A ideia de um filme de pôquer é perfeita para Schrader, um homem cuja arte sempre mostrou outros homens arriscando suas vidas profissionais, espirituais e emocionais em troca de um bem-maior, nem sempre percebendo quando eles já se afundaram na falácia do custo perdido. Sua cegueira não vê quando o investimento vira vício. Mas no roteiro de The Card Counter, Schrader parece ciente disso, desejando comentar em cima de suas próprias criações. Tell, por exemplo, não é um viciado. Ele está determinado a jogar apenas um ano, não se endividar com Linda e sua motivação maior não é o dinheiro, mas sim mudar a visão de Cirk.


Schrader, entretanto, está ciente que aqueles que reparam no argueiro no olho de irmão nem sempre enxergam a trave em seus próprios olhos. Tell não está se perdendo no dinheiro, mas na busca desesperada por absolvição. Em determinado momento, o personagem - cujos sentimentos só se tornam visíveis quando ele escreve em seu diário, tarde da noite, com a caneta numa mão e o uísque na outra - nos explica como a sensação de ser perdoado ou se perdoar é essencialmente a mesma. Seu roteiro ainda está repleto de romantismo. Ele continua apaixonado com sua própria obra. Em contrapartida, a direção revela um ceticismo pesado, aqui representando a fúria e cicatrizes de uma geração norte-americana definida por guerras em busca de ganho financeiro, de tortura e falta de sentido.


A América de Schrader, aqui, é um cassino gigante no qual pessoas apostam suas vidas em troca de um sonho mentiroso. Regularmente, Tell encontra um rival de pôquer cuja roupa é a bandeira norte-americana e o grito de vitória é "USA, USA, USA." Este oponente é apresentado como um tolo perdido na ilusão de um país com complexo de grandeza. Em The Card Counter - graças a fotografia de Alexander Dynan, direção de arte de Christine Brandt, sets de Mary Goodson e produção de Ashley Fenton - os Estados Unidos é uma loteria cinzenta cujos dias estão sempre nublados, iluminados por um sol pastoso e dessaturado; suas noites são cheias de neon e fumaça, maquiagem para esconder o vazio por trás dos sorrisos automáticos.


Igualmente românticos e céticos, Schrader e seu protagonista - mais um de seus homens solitários em salas vazias - buscam vencer a casa. Eventualmente, Tell acredita ter a melhor mão para ganhar o jogo e finalmente se expõe, levando-o à eventual conclusão de que é impossível derrotar um mundo caído com bondade. Sua salvação não virá por obras. O diretor, porém, não consegue fugir de um final com notas de esperanças. Ele ama o personagem demais para isso.


Nota: 4.5/5

guilherme-jacobs
review
crítica
premiado

Você pode gostar

titleCríticas

Godzilla e Kong: O Novo Império abraça a loucura psicodélica e, infelizmente, os humanos

Novo filme dos monstros parece ansioso para deixar os humanos de lado, mas seu roteiro insiste em atrapalhar.

Guilherme Jacobs
28 de março de 2024 - 7 min leitura
titleFilmes e Cinema

Anatomia de Uma Queda tem Sandra Hüller numa das melhores atuações do ano - Crítica do Chippu

Anatomia de Uma Queda faz paralelos dentro de paralelos para confundir seu espectador sem nunca deixar de apresentar sua história com clareza

Guilherme Jacobs
25 de março de 2024 - 6 min leitura
titleCríticas

Ervas Secas faz fantástico estudo de personagens com humor desconfortável

Novo filme do diretor turco Nuri Bilge Ceylan foi um dos melhores do Festival de Cannes 2023

Guilherme Jacobs
21 de março de 2024 - 8 min leitura
titleNetflix

O Problema dos 3 Corpos: Série dos criadores de Game of Thrones flerta com as estrelas mas fica na terra

Primeira temporada da adaptação de Cixin Liu é grandiosa apenas em momentos

Guilherme Jacobs
21 de março de 2024 - 6 min leitura