Sandman é um Sonho realizado - Crítica do Chippu

Sandman é um Sonho realizado - Crítica do Chippu

Adaptação da HQ de Neil Gaiman mantém espírito da obra original

Guilherme Jacobs
5 de agosto de 2022 - 10 min leitura
Notícias

Sonho ou pesadelo? Quando o assunto é adaptar a HQ Sandman, para muitos a obra máxima de Neil Gaiman no gênero de fantasia, essa era a principal dúvida. Por um lado, seria a oportunidade de revisitar Morpheus e os Perpétuos e ver suas vidas saltando da página. Por outro, essa sempre foi uma daquelas narrativas consideradas "inadaptáveis''. O tom é profundamente específico, há muita necessidade de efeitos especiais e os personagens precisam ser cuidadosamente interpretados. Inúmeras propostas surgiram, algumas estiveram perto de sair do papel, e agora temos a série da Netflix, lançada nesta sexta-feira (5). Então, sonho ou pesadelo?


Com Tom Sturridge no papel de Morpheus e Gaiman assinando o roteiro ao lado de David S. Goyer e Allan Heinberg, a série de Sandman é, ao mesmo tempo, o melhor tipo de adaptação possível para uma obra como esta, e um lembrete de que algumas coisas simplesmente nunca vão funcionar totalmente fora das páginas. O balanço final, porém, é motivo de celebração para quem passou décadas temendo acordar um dia e ver sua amada história maltratada. Hoje, estas pessoas podem dormir em paz.


Sandman acompanha Morpheus/Sandman/Sonho. O nome você escolhe. Ele é um dos sete Perpétuos, personificações de ideias poderosas (Morte, Destino, Desespero, Desejo — em inglês são todos com “D”). Quando o conhecemos, ele está prestes a ser preso pelo ganancioso nobre Roderick Burgess (Charles Dance) no porão de uma mansão em Londres. Lá, ele permanecerá preso por 100 anos.


Assim como a primeira edição da HQ, o primeiro capítulo é mais lento e menos interessante (afinal, o protagonista está em cárcere até os minutos finais), mas a verdadeira trama se revela depois que ele é liberto. Seu Reino dos Sonhos foi destruído, suas criações — manifestações de Sonhos e Pesadelos, como o sádico Coríntio (Boyd Holbrook, assustador e charmoso em medidas iguais) — fugiram, e seus equipamentos, feitos com sua própria essência, foram roubados. É hora de consertar as coisas.


A primeira temporada, com dez episódios, engloba os dois primeiros volumes da HQ e mostra a missão de Morpheus para reconstruir seus reinos, recuperar seus artefatos e encontrar suas criações. É uma jornada reflexiva através da qual o protagonista, mais uma divindade monarca e menos um herói de quadrinhos, precisa redescobrir seu propósito após um século de isolamento.


Nessa jornada, ele passará por catedrais na Inglaterra, cafeterias 24 horas e até o próprio Inferno, onde Lúcifer (Gwendoline Christie, deliciosamente intimidadora) o aguarda para um confronto. Seus companheiros incluem a exorcista Johanna Constantine (Jenna Coleman, na maior mudança do original, e não só pela troca de homem por mulher), sua fiel bibliotecária Lucienne (Vivienne Acheampong) e, claro, sua própria irmã, a Morte (Kirby Howell-Baptise).

De cara, fica claro como Sandman pretende explorar os mais amplos conceitos com as mais ousadas ferramentas. Há anjos, demônios, pesadelos, gárgulas e monstros por todo lado. Tal como o texto original de Gaiman, porém, a série consegue ancorar tudo isso em personagens bem construídos, com dramas compreensíveis e transformações emocionais executadas de maneira refrescantemente simples.


Essa é uma história sobre criação e seus custos, sobre como pedaços dos criadores sempre podem ser identificados na criatura, e como a dinâmica entre as partes pode ser complicada Gaiman, Goyer e Heinberg nos revelam isso tudo em relacionamentos. Irmãos, mães e filhos, amigos, amantes. Conhecedor ou não dos quadrinhos, entendedor ou não do funcionamento deste universo de fantasia sombria, nada é tão importante quanto compreender as razões, medos e sonhos destas figuras. Isso, a série faz de forma competente.


Algumas histórias são transportadas com louvor. “24 Horas”, “O Som de Suas Asas” e “Homens de Boa Fortuna” vão emocionar leitores veteranos como fizeram na primeira leitura, mas também tocarão o coração de novos espectadores. Outros momentos emblemáticos vão ficar um pouco abaixo da expectativa. A fidelidade é total.


Estão presentes os problemas da HQ. O segundo volume, adaptado a partir do episódio sete, é um pouco confuso demais. As qualidades também estão lá — vocês não estão preparados para o episódio seis — mas há mudanças pontuais e lógicas, feitas com cuidado. A série, por exemplo, se passa em 2022. Alguns personagens trocam de lugar. O espírito, porém, permanece imaculado.


Certos elementos mais fantasiosos sofrem por conta da transformação da arte visual, um terreno sem limites para imaginação, em um mundo de efeitos práticos ou digitais nos quais a criatividade se traduz em algo físico e feito com orçamento.


A computação gráfica, em particular, tem altos e baixos. Ambientes como o Sonhar e o Inferno são os melhores exemplos. Às vezes, estes se tornam massas cinzentas sem grandes qualidades, mas a série encontra a saída para isso com uma direção de arte fabulosa. No reino infernal há mais de um cenário, e alguns deles possuem uma beleza assustadora, compensando a qualidade mediana dos efeitos.


O senso estético beneficia grandemente personagens, independente de existirem graças a computadores (Azazel está incrível) ou serem apenas atores com bons figurinos (Verde do Violinista de Stephen Fry). Poderes e magia, porém, são os elementos que mais sofrem com a ida para o live-action. Tais tropeços, porém, são pequenos diante das conquistas da série. Bem produzida, visualmente fantástica e com excepcional elenco, ela não só captura o que tornou o quadrinho tão inesquecível, como facilitará a chegada de novos fãs.


Muito disso é por conta do protagonista. O Sonho, como eu gosto de chamá-lo, começa sua jornada como um receptáculo, e aos poucos se depara com conclusões importantes sobre a humanidade e o papel dos Perpétuos. Ele é uma âncora. Quando Sandman navega para o abstrato, algo um tanto quanto problemático nos episódios finais, podemos olhar para ele e encontrar o âmago da narrativa.


Sturridge faz um trabalho irregular, mas positivo no papel. Algumas de suas escolhas, como a boca mais fechada para engrossar a voz, vão se destacar de forma negativa à primeira vista, mas a atuação mais interior, efetivamente transformando o personagem num receptáculo para o mundo rico ao seu redor, permite que entremos em sua perspectiva. Quando Morpheus começa a se soltar — no texto e na atuação — já estamos plenamente felizes de estar ao seu lado.


Holbrook, Christie, Acheampong e Howell-Baptise são outros destaques do elenco. Os dois primeiros fazem vilões fantásticos, e as duas últimas coadjuvantes dignas de protagonismo. A Morte, em especial, faz uma primeira impressão tão marcante quanto nos quadrinhos e imediatamente nos deixa desejando mais, em grande parte por como sua intérprete tem vida nos olhos. David Thewlis captura maravilhosamente a tragédia e o terror de John Dee. Ferdinand Kingsley traz Hob Gadling à vida com carisma e bom-humor. Kyo Rai encarna o espírito sonhador de Rose Walker. Podemos sentar aqui e listar ótimos atores em ótimos papéis durante todo o texto. Ainda nem falei de Mason Alexander Park como Desejo, nem de Patton Oswalt como a voz de Matthew.


Sandman, afinal, é riquíssimo. A adaptação tem problemas, assim como o quadrinho, mas ela traz a principal característica da premiada história publicada pela DC Comics: sua paixão por histórias. A cada episódio (aliás, a série merece muito crédito por ter episódios, e não tentar ser um filme de dez horas), conhecemos novos rostos marcantes, testemunhamos acontecimentos divertidos, aterrorizantes, emocionantes e belos. Esta grande metáfora de Gaiman sobre ser um escritor, sobre criatividade e sonhos, ama o fato de ser uma história, ama brincar com este tão valioso recurso e celebrar as várias emoções que ele pode transmitir. Sandman te faz sonhar.

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