Vidas Passadas é um dos filmes mais dolorosos e lindos do ano

Vidas Passadas é um dos filmes mais dolorosos e lindos do ano

Entre ecos de romances e lembranças do passado, diretora faz poderosa reflexão sobre identidade e mudança

Guilherme Jacobs
25 de janeiro de 2024 - 13 min leitura
Notícias

“E se…” é uma proposta intoxicante. É fácil nos perdermos num infinito de realidades alternativas, histórias diferentes e cenários imaginados quando seguimos essa linha tão apetitosa de pensamentos. Talvez seja por isso que em Vidas Passadas, ambos homens na vida de Nora Moon (Greta Lee) considerem tanto a questão. Hae Sung (Teo Yoo), seu melhor amigo e paixonite da infância, fantasia sobre o que teria acontecido se ela não tivesse deixado a Coreia do Sul quando eles tinham 12 anos, ou se ele tivesse ido a Nova York para reencontrá-la aos 24. Já Arthur (John Magaro), seu marido americano, reflete sobre como, se outro escritor tivesse conhecido Nora na residência artística onde eles se apaixonaram, ela poderia estar com ele agora.

Nesse encontro inicial entre Nora e Arthur, a diretora e roteirista Celine Song nos apresenta ao conceito de “In-Yun,” uma palavra sem tradução literal para o português ou inglês, mas cujo significado parece dar sentido às eternas possibilidades do “e se…” O termo representa uma espécie de providência unindo as pessoas ao longo de suas várias reencarnações, sugerindo que se há um contato mínimo nessa vida, como um tocar de roupas na rua, houve algo entre aquelas duas pessoas numa encarnação passada. As almas se tornam destinadas a se encontrar vez após vez, talvez como amigos, talvez amantes, talvez como estranhos.

Nora não acredita, de verdade, nessa ideia. “É algo que coreanos usam para seduzir alguém,” ela diz, fazendo exatamente isso com Arthur. Mas como Song mostra através de suas composições cuidadosas e roteiro discreto, não é preciso acreditar em reencarnação para vivermos vidas diferentes, termos outros nomes e sermos algo novo enquanto passamos por aqui. Em três atos, cada um a 12 anos de distância do outro, Vidas Passadas passeia pelas vidas de Nora; primeiro como uma habitante de Seul chorona e ambiciosa, e depois como uma dramaturga motivada em Nova York. Ao longo desses períodos, Song nos leva de volta ao passado com imagens recorrentes e reencontros carregados. Juntos, eles formam um dos filmes mais emocionantes de todo o ano.

Ainda em Seul, a mãe de Nora é questionada sobre o que ela e sua família perderão ao sair do país. “Se você deixa algo para trás,” ela diz, “você também ganha algo novo.” A principal coisa deixada para trás pela Na Young, como Nora era chamada na Coreia, é Hae Sung, seu colega de classe, companheiro de caminhada e, talvez, mais que um melhor amigo. “Provavelmente vou casar com ele,” ela diz em tom lúdico, inconsciente da influência dessa ideia. Basta ver o olhar triste e saudoso de Hae Young no seu último dia com Na Young para enxergar que ele levaria isso totalmente a sério.

Então, 12 anos passaram. Em Vidas Passadas, Song nunca usa a expressão “12 Anos Depois." Sempre é “12 Anos Passaram.” Essa simples escolha é o melhor exemplo de como a sutileza da diretora inunda os mínimos momentos do filme com uma avalanche de sentimentos, e em Vidas Passadas, a ideia dos anos passando ajuda-nos a interpretar o andar do tempo como um contínuo formado por várias eras, uma corda costurada por esses intertítulos. Os capítulos da vida de Nora estão separados, temporal e geograficamente, mas estas quebras ligam a menina que deixou Seul à jovem que um dia se reconectou com Hae Sung por Skype e pelo Facebook durante seus primeiros meses em Nova York.

Este segundo ato, o menos energético de Vidas Passadas, é abastecido pelos ares de comédia romântica meet-cute e pela nostalgia que Song, e qualquer um familiar com a internet daquela época, sente pelas conversas meio constrangedoras e travadas pelo Skype. A alegria desta segunda chance é permeada pela tristeza da distância, e eventualmente a empolgação que Nora sente ao falar com Hae Sung novamente vai dando lugar à crescente e difícil certeza de que será necessário fechar uma porta para abrir outra. Esta é a fase menos elétrica do relacionamento deles, e também do filme. Apesar do bom trabalho de Lee e Yoo, comunicando uma mistura de dor e amor em cada olhar trocado (por uma webcam), Song ainda está em fase de preparação, movendo as peças no lugar para enfim dividi-los e, aos 40 minutos do longa, partir para o genuinamente incrível pedaço final dessa história.

A última ligação para Hae Sung vai de um quarto escuro para a luz do sol nova-iorquino, traçando uma linha entre os edifícios da cidade para inundar o quarto de Nora, como se a metrópole a recebesse de uma vez por todas. Mais 12 anos se passam, e Hae Sung entra na vida de Nora novamente. Ele está vindo para Nova York, onde ela e Arthur, agora casados, o esperam.

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Neste terceiro ato, todos os temas de Vidas Passadas se encaixam. Os objetivos de Song entram em foco, e aliada às vistas arrebatadoras da grande cidade e conversas silenciosamente intensas entre seus personagens, a diretora progressivamente nos desperta para a realização de que este filme é mais sobre quem Nora é, e como cada homem representa uma faceta de sua personalidade, do que um “com quem ela vai terminar”. Não me entenda errado, leitor. Você vai se perguntar com quem ela vai ficar, mas rapidamente fica claro que só há uma resposta, e Past Lives transforma essa curiosidade ardente numa ponderação quieta e profunda sobre identidade. Cada um deles é uma vida.

Para conseguir isso, o texto de Song precisa ser o mais afiado possível. Econômica nos diálogos mas perspicaz na caracterização, ela insiste em tratar qualquer membro deste triângulo como pessoa, e não uma ferramenta para nos manipular. Arthur brinca sobre ser o “marido branco do mal” separando os namorados de infância de seu final feliz prometido, mas felizmente Vidas Passadas nunca tende para o melodrama. No lugar do novelesco, há humanidade. Em grande parte pela atuação vulnerável mas realista de Magaro, que nunca esteve tão bem quanto aqui, Arthur demonstra suas inseguranças sem jamais parecer um vilão, e assim Song evita a armadilha de torná-lo um competidor de Hae Sung. Eles são ambos parte das vidas de Nora.

Como ela seria se tivesse ficado na Coreia? Talvez tão tradicional como Hae Sung, vivido por Yoo com o estoicismo do último romântico. “Ele é tão coreano,” ela repete após ver seu amigo de infância como adulto pela primeira vez. Seus maneirismos, costumes e visões revelam um caminho paralelo ao que ela traçou, onde “coreano” parece ter virado algo estranho, ainda que ela continue falando em seu idioma original quando sonha. Ali, no seu subconsciente, está Seul, está a menina chorona. Ali está Hae Sung. Talvez seja isso que assombre Arthur. Da mesma forma, olhar para o bom marido casado com paixão de sua vida vai ferir a Hae Sung.

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Reservada e risonha, Lee frequentemente precisa apenas de um gesto ou risada para nos trazer para dentro da protagonista entre os dois. Especialmente na esplêndida segunda hora do filme, a atriz precisa equilibrar múltiplos tons em cada interação com os homens, deixando transparente a quantidade exata da sombra da dúvida para construir uma mulher certa de suas escolhas e vontades, mas não imune às feridas da nostalgia e da contemplação.

Repetidamente, Song consegue enquadrar essa tempestade interior em campos onde o que não está em tela é tão importante quanto o que ocupa o centro da câmera de Shabier Kirchner (há um corte genuinamente chocante para um close excluindo um personagem que partirá seu coração), enquanto a trilha sonora de Christopher Bear tempera algumas das cenas mais agridoces do ano. Song sente vontade de fazer inserções para, ao repetir um campo, nos lembrar de um momento anterior. É desnecessário, porque quando ela repete uma imagem, o efeito transportador dos versos dessa poesia visual já está lá — a estrofe anterior ainda está entalhada em nossa mente, assim como na dos personagens.

Esses ecos perpetuam a intenção maior de Vidas Passadas. Ao se recusar a tratar o material (em grande parte autobiográfico) como um romance onde há uma decisão a se fazer, preferindo sempre uma abordagem honesta, ela gera uma narrativa na qual cabem tanto a existência da garotinha por quem Hae Sung se apaixonou e com quem imaginou crescer, quanto a da mulher casada que deixou Seul para forjar uma aliança com Arthur. Nora é quem é porque tudo isso está nela. Hae Sung e Arthur se apaixonaram por ela porque aos 12 anos ela era aquela pré-adolescente, e aos 36 ela virou essa adulta.

O passado sempre fica maior quando o encaramos pela lente do presente, e é de olho nessas vidas passadas que gostamos de pensar no “e se…” Vidas Passadas encontra impacto e poder nas maneiras como usa Seul e Nova York, ou Hae Sung e Arthur, para ligar as diversas vidas passadas de Nora, dispensando a reencarnação e mostrando que basta uma mudança de cidade e de nome para virarmos outra pessoa — alguém que, por sua vez, só existe graças a quem deixamos pra trás. Para uns, somos quem parte, para outros, somos quem ficamos. Numa das últimas e mais marcantes cenas de Past Lives, Celine Song reenquadra o momento de maior separação da infância de Nora como o de maior união de sua maturidade. A garota que um dia foi embora subindo uma escadaria parece enfim chegar à casa no topo dos degraus.

Crítica publicada originalmente em 29 de agosto de 2023. Vidas Passadas estreia no Brasil em 25 de janeiro de 2024.

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