Paprika, obra-prima de Satoshi Kon, é lançada na Netflix. Pare tudo e vá assistir
Animação de 2006 retornou ao streaming no Brasil
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Vez por outra, um grande filme que estava há tempos ausente dos serviços de streamings ressurge em alguma plataforma popular, e com isso vem a oportunidade perfeita de revisitar (ou assistir pela primeira vez) uma daquelas obras obrigatórias com mais facilidade. Bom, neste 1º de agosto, Paprika entrou na Netflix. Você precisa assistir a Paprika.
Paprika é um longa-metragem animado de 2006 dirigido por Satoshi Kon, um homem cuja brilhante carreira foi dolorosamente curta. Morto com apenas 46 anos por conta de um câncer no pâncreas, ele foi como uma explosão de luz e criatividade cujo pouco tempo nesta Terra foi suficiente para deixar grandes trabalhos para trás — nenhum mais popular ou impressionante do que Paprika.
Um suspense de mistério frequentemente citado como uma fonte de inspiração para filmes de Darren Aronosfky e A Origem de Christopher Nolan, Paprika acompanha uma equipe de cientistas tentando descobrir quem roubou o DC Mini, uma invenção que os permite entrar nos sonhos das pessoas para realizar tratamentos psicológicos ao encarar traumas, investigar pesadelos recorrentes e encontrar verdades em meio às ilusões. A protagonista, Dr. Chiba Atsuko, normalmente toma à frente do trabalho com sua alter-ego Paprika, uma espécie de persona responsável por guiar os pacientes neste passeio pelo subconsciente. Quando o aparelho passa a ser usado para fins nefários, ela precisa se arriscar para descobrir a identidade do vilão.
Concebido por Kon para tirar toda gota de potencial de seu formato, Paprika é uma montanha russa de cinema cujas principais armas são as ferramentas do meio. As propostas de montagem, perspectiva e visual presentes apenas na animação dão a Kon ampla liberdade para fazer algo cuja existência em live-action (boa sorte Cathy Yan) ou 3D seria impossível; quebrando regras cinematográficas, aproveitando cada corte ou transição para inserir outra ideia e nunca se limitando na composição das sequências mais ousadas do filme.
Estas criações são possivelmente a melhor reprodução de lógica de sonho no cinema, talvez mais ainda do que as filmografias de David Lynch ou Federico Fellini. Kon nos coloca dentro de um universo tão estranho quanto familiar, um mundo para o qual vamos toda noite quando fechamos os olhos — onde conhecemos mais ou menos o lugar onde estamos, mas nunca como chegamos lá, onde temos uma noção dos nossos arredores, mas eles parecem mudar instantaneamente, onde a realidade é palpável mas abstrata. Paprika mostra o verdadeiro poder da animação como forma de recriar o impossível. Não há nada surreal demais para se colocar numa imagem.
É como se Kon visse cinema, e animação em particular, como o próprio sonho. Tanto a arte quanto o devaneio nos deixam moldar como quisermos a paisagem ao nosso redor, transformando tudo numa fração de segundo enquanto movemos o olhar. Piscamos, e o cenário é outro. Em Paprika, Kon nunca desperdiça uma chance de prender nossa atenção e nos surpreender. Ele encontra os caminhos mais divertidos, inesperados e perturbadores de encenar cada momento, do trocar de uma roupa até uma perseguição policial, e faz mágica quando conecta uma composição à outra.
O trabalho de Kon, e Paprika em particular, viralizou há 10 anos, quando o ótimo canal Every Frame a Painting, do montador Tony Zhou, fez uma excelente análise de sua montagem e edição. No vídeo, Zhou destaca a preferência de Kon por distorcer o tempo e espaço, retendo informações sobre personagens, enquadramentos e imagens até revelá-las de algum jeito imprevisível. Paprika, por tratar de sonhos, eleva essas técnicas à enésima potência, e de certa forma serve como testamento para todo o estilo de Kon.
Afinal de contas, sonhos são a desculpa perfeita para um diretor cuja grande assinatura se vê no deformar e reformar dos campos de um filme se soltar de todas as amarras. Essa ideia é potencializada pelo personagem Toshimi Konakawa, um policial cujo passado envolve uma grande paixão por cinema, e cujos arco é a perfeita materialização da mistura entre cinema, sonho e realidade. Ele é um homem cuja imaginação e profissão estão diretamente ligadas ao seu relacionamento com a arte. Aquilo que ele filmou virou sua vida, e sua vida virou sua fantasia. Não é difícil enxergar Kon no papel.
Hoje, celebramos filmes como Homem-Aranha Através do Aranhaverso e Pinóquio por Guillermo del Toro, grandes feitos de animação cujo sucesso está ligado à exploração do meio. Como filmes animados podem ser únicos? Como podem comunicar emoções? Como suas texturas podem informar sua história? Satoshi Kon pavimentou esse caminho quando lançou Paprika em 2006. Assistir a Paprika em 2023 é notar como Satoshi Kon estava à frente do seu tempo. A animação ainda está correndo atrás do que ele sonhou.