O Beco do Pesadelo - Crítica do Chippu

O Beco do Pesadelo - Crítica do Chippu

Guillermo del Toro cria circo fascinante e bizarro em noir com Bradley Cooper

Guilherme Jacobs
19 de janeiro de 2022 - 13 min leitura
Notícias

Guillermo del Toro passou toda a carreira nos mostrando, por meio de monstros, como os humanos são as verdadeiras monstruosidades. Suas criaturas, das gigantes às fantasmagóricas, dos faunos intimidadores aos peixes apaixonados, são tipicamente incompreendidas, inocentes ou pelo menos sem maldade inerente. Os humanos, porém, são preconceituosos, fascistas e manipuladores. O Beco do Pesadelo, primeiro grande filme do cineasta mexicano sem qualquer aspecto sobrenatural, sublinha essa questão com linhas emocionalmente maduras escritas pelo diretor, aparentemente determinado a explorar os temas sempre presentes em suas obras agora sem escondê-los debaixo das fantasias e magias, mas ainda usando imagens e mundos que o fascinam desde a infância.


Del Toro está interessado em excluídos, abandonados e estranhos. Ele já comentou sobre como fetos em jarras o lembravam de anjos - algo mencionado por um personagem - e como ver monstros perseguidos nas telonas o fazia simpatizar com as criaturas. Não é surpresa, então, vê-lo atraído pelo circo. O noir original de 1947, O Beco das Ilusões Perdidas, dirigido por Edmund Goulding e baseado no livro de William Lindsay Gresham publicado apenas um ano antes, o deu a abertura perfeita. Feito debaixo do código de censura dos EUA na época, o filme - sobre um mentalista chamado Stanton Carlille (Tyrone Power no original e Bradley Cooper aqui) levando os truques aprendidos no mundo do entretenimento à cidade grande para enganar ricaços - pintava temas como abuso religioso, sexualidade e o terror da Segunda Guerra Mundial, empoderado pelos grandes discursantes da época dentro do contexto de um gênero no qual o protagonista muito ambicioso e sonhador normalmente pagava caro por sua ganância. Por conta das restrições, muito foi deixado à imaginação da audiência, particularmente a sexualidade e a violência contra animais dentro do circo.


O material é perfeito para as sensibilidades de del Toro, um dos grandes cineastas modernos quando o assunto é construção de mundos. Mesmo sem lobisomens ou kaijus, o circo oferece a ilusão do bizarro; Homens se dobram como cobras, mulheres aguentam muita eletricidade, campeões capazes de levantar todo peso e, o mais importante para a narrativa, o Selvagem - um ser humano desnutrido, cuja mente colapsou depois de muita tortura e álcool. Agora, ele rasga o pescoço de galinhas vivas para chocar os pagantes. Aqui, del Toro - sem dúvidas aliado do design de produção de Tamara Deverell, figurino de Luis Sequeira, direção artística de Brandt Gordon e a impecável decoração de set de Shane Vieau - cria um verdadeiro universo, cheio de regras não faladas, de costumes, de mínimos detalhes e segredos. Há um senso de comunidade, de história, de local. As atrações comandadas por Clem (Willem Dafoe) são bem realizadas. Vemos os membros em ação, como o fortíssimo Bruno (Ron Perlman), o pequeno Major (Mark Povinelli), a inocente e linda Molly (Rooney Mara) e a sensual e sagaz Zeena (Toni Collette), que junto com seu ajudante, o alcoólatra Pete (David Strathairn), conquista a atenção de Stan.


Passear pelo circo de O Beco é tão atraente, divertido e assustador quanto os castelos góticos de Colina Escarlate ou as florestas encantadas de Labirinto do Fauno, o olhar pueril do mexicano trata essas aberrações - como muitos os chamam - semelhantemente a super-heróis, dignos de queixos caídos e olhares arregalados. As luzes quentes atravessam cortinas de fumaças enquanto os toldos refletem o luar em suas superfícies molhadas pelas chuvas constantes de um Estados Unidos cuja inocência ainda existe na mente de diversos cidadãos, exceto aqueles já espertos e sacanas o suficiente para explorá-la. O local aceita a todos. Logo, ele é o ambiente perfeito para um solitário misterioso como Stanton.


O Beco do Pesadelo trabalha com cuidado o papel de Cooper. Seu passado, apenas sugerido no filme de 47, é explicado sem longas falas expositivas, e sua personalidade e motivações ganham um contexto muito bem-vindo. Del Toro está ciente da necessidade de desenvolver bem o protagonista de um noir, um gênero cuja própria essência requer do personagem escolhas difíceis, uma sutil relação entre causa e efeito, decisões e consequências, normalmente levando a conclusões tristes, porém justas. Filho de um hipócrita violento com uma mãe que o abandonou, ele possui relações complicadas tanto com figuras de paternidade, quanto com crenças no divino (ou profano), e um fascínio quase adolescente por mulheres. Ele também é cético com autoridades mas cego às próprias fraquezas. Del Toro, escrevendo o roteiro ao lado de sua esposa Kim Morgan, merece crédito por trabalhar a história como uma análise de caráter, firmando o desenrolar da mesma não em uma série de acontecimentos desligados e aleatórios diante dos quais Stanton deve reagir, mas sim na agência do herói (vilão? Vítima?) central.


Cooper interpreta o personagem como um astro do cinema. Protagonizando um filme pela primeira vez desde sua revelação como ator-diretor em Nasce uma Estrela, ele finalmente parece confortável com sua carreira. Um estudante de Hollywood obcecado por figuras como Warren Beatty e Clint Eastwood, ele confia grande parte do papel - uma vez destinado a Leonardo DiCaprio - às suas expressões faciais e olhar distante, escondendo no silêncio uma vastidão de pensamentos - nem todos bons. Passando os 10 minutos iniciais do longa praticamente sem falar nada e quase toda a primeira metade como um observador coletando informações não só sobre truques do circo, mas comportamento humano, ele parte em direção à Buffalo, Nova York com dinheiro e poder em vista. De fato, sua interpretação (e a direção de del Toro, enfatizando particularmente os olhos azuis do veterano do Actor’s Studio) confia em seu carisma e estrelato natural ao ponto de enfatizar o charme de Stanton e bloquear suas próprias tentativas de se aprofundar na escuridão da psique do personagem.


Conforme seu trabalho troca o circo pela cidade grande, onde ele cria um espetáculo junto com Molly, Stanton começa a se embebedar não no álcool - uma tentação contra a qual ele parece sempre precisa lutar - mas em seu mentalismo, e assim o próprio enganador se perde nas mentiras, procurando desculpas para justificar seu verdadeiro desejo; um senso de superioridade manifestado através do controle e do dinheiro. Cooper é tão “astro” no filme, que se mostra incapaz de convencer quando o assunto é malandragem. Ele tem carisma, ele faz bem a tragédia. Mas as sombras nas quais del Toro constantemente o coloca não combinam com seu rosto.


Esse problema é acentuado na segunda metade do filme, quando o circo é deixado junto com suas figuras interessantes. A Zeena e Pete de Collette e Strathairn, particularmente, enriquecem não só o texto como as atuações (incluindo a de Cooper), desenrolando seus personagens como pergaminhos complexos, repletos de histórias para contar nas noites de inverno quando o circo fecha e seus astros vão para casa. Ela com um carinho pelo esposo vindo de um relacionamento genuíno, construído por anos através da confiança e sacrifício, digno de uma fidelidade (caridosa, se não sexual) mesmo agora . Ele, cuja ida ao álcool parece ter sido uma preferência em se embebedar no líquidos e não na manipulação de pessoas, mas cujos momentos sóbrios, preciosamente raros, mostram sabedoria e cuidado.


Em seu lugar, na segunda metade, O Beco de Pesadelo confia no trabalho de Mara e Cate Blanchett, interpretado a femme fatale Lilith, uma psiquiatra cujos clientes incluem os ricos e influentes. Mara faz bem com o pouco que recebe, mas seu papel é, por natureza, mais limitado. Blanchett, uma das grandes atrizes de sua geração, não entrega seu melhor trabalho aqui, confiando apenas em seu olhar penetrante para comunicar as profundezas do papel. E quem pode julgá-la? É Cate Blanchett. Sua Lillith, porém, é onde grande parte da carga temática do filme se estaciona. Apesar do título, o livro de Gresham não retém nenhuma ilusão quanto à sociedade americana, enxergando políticos, líderes religiosos abusivos, vícios e o capitalismo como culpados pela direção do país após a recém terminada Segunda Guerra Mundial. Del Toro, mesmo adicionando 20 minutos à duração da história se comparada ao filme original, não consegue explorar todas as direções.


É preciso dar crédito ao cineasta. Sua direção aqui, composta por becos infinitos seguindo em direção à loucura e círculos com poder de sugar Stan semelhante à maneira como buracos negros engolem a luz, é tão precisa e criativa quanto sempre, mas ao tentar manter todo o cardápio material, del Toro acaba deixando alguns pratos caírem no chão. Diferente do filme de 47, seu Beco do Pesadelo trabalha com mais cuidado o relacionamento de Stan e Molly, as estratégias e técnicas dos truques, as sessões de terapia manipulativas entre Lilith e Stan. Mas ainda sim, coisas como o passado da psiquiatra, a relação do país com a guerra, a repulsa de Stan à violência contra a mulher, permanecem no raso.


Talvez del Toro tenha sido vítima de sua maior qualidade: o encanto. No circo, e nos temas ali presentes, o deslumbramento do cineasta corre vivo, brilhando em sua escuridão e fascinando no macabro, mas ao se afastar do ambiente mais criativo, ele se torna menos eficaz, menos preciso, seus truques, como os de Stanton, começam a ser desmascarados. Mas como bom mágico, del Toro faz um trabalho primoroso. Olhar por trás da cortina nem sempre arruína a magia. Às vezes, isso aumenta nossa admiração pelo autor do golpe. Essa verdade é encapsulada pelo excelente final do filme, previsível em seus acontecimentos, mas gloriosamente melancólico em sua execução ironicamente ácida.


Nota: 3.5/5


O Beco do Pesadelo estreia no dia 27 de janeiro no Brasil.

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