Meu Pai - Crítica do Chippu

Meu Pai - Crítica do Chippu

Anthony Hopkins dá a atuação de uma vida num filme que acerta dolorosamente os detalhes sobre conviver com alguém (e sofrer) com demência

Guilherme Jacobs
14 de abril de 2021 - 8 min leitura
Notícias

Alzheimer e demência são conquistadoras. Elas não só invadem a mente de quem sofre com essas doenças, mas também a vida das pessoas ao seu redor, particularmente os familiares. Não há como continuar a viver da mesma maneira, a rotina muda, novas preocupações surgem e há uma constante dificuldade entre equilibrar o amor pelo ente enfermo com as feridas causadas pelo esquecimento, por brigar por conta de algo óbvio para uma mente sã ou agir de maneira agressiva. É devastador, e Meu Pai - filme dirigido e escrito por Florian Zeller com base em sua própria peça - sabe disso


Anthony Hopkins interpreta Anthony (na peça ele se chama Andre, mas o nome foi alterado no filme para causar ainda mais imersão), um idoso britânico de 80 anos sofrendo com demência. Se até mesmo tarefas do cotidiano, como colocar seu relógio ou vestir um suéter, estão ficando difíceis, o que dizer de lembrar o rosto da filha, Anne, vivida por Olivia Colman… na maior parte das cenas.


Anne muda de rosto ao longo do filme enquanto Anthony se adapta a viver no flat da filha, ou seria seu flat? Ou será que o apartamento é de Paul, seu novo genro? Na verdade, seu nome é James, e ele é de Paris. Ou de Londres.


Se isso parece confuso, é porque é a intenção de Zeller. Meu Pai reconhece a demência como algo que tira toda a certeza da pessoa, todas as garantias são jogadas pela janela e não há como saber se a informação que você está adquirindo é verdadeira ou nova. O esquecimento é costurado junto à fábrica da vida.


Meu Pai coloca a audiência firmemente nos pés de Anthony. Acompanhamos Hopkins durante um período de tempo que parece tão indeterminado para nós quanto para ele. É difícil saber quantos dias se passaram, o que aconteceu hoje e o que foi ontem. É, afinal, como ele enxerga o mundo. Zeller mantém uma firme mão como cineasta, nunca dando uma saída fácil para o personagem e audiência, sem momentos de claridade fabricados para gerar uma cena emocionante cujo propósito é apenas criar algo cinematográfico.


Os truques de direção, como alterar o ator, a montagem das cenas e até mesmo elementos do set, existem em função do estado mental e emocional de Anthony, da sua dificuldade e realidade. Ao longo da história, Anne e seu marido aparecem com diferentes rostos, mudam suas histórias e até o comportamento. Mark Gatiss, Rufus Swell e Olivia Williams interpretam figuras recorrentes na mente do idoso, mas Zeller mostra clareza o suficiente para deixar evidente, ao final do longa, qual é a verdadeira identidade de cada um, o que muitas vezes torna ainda mais trágico ver como Anthony os enxerga.


Quem também recebe muita claridade é Colman, que é, sem dúvidas, a filha de Anthony. Seu papel é tão bem trabalhado quanto o pai. Meu Pai é um filme que exibe com honestidade a vida de uma pessoa com demência e também daqueles que a amam e acompanham.


Eu perdi meu avô em 2006. Ele teve uma batalha contra um caso de Alzheimer descrito pelos médicos como “galopante.” Foi tudo muito rápido. A casa muda completamente, os filhos precisam se comportar como pais e a situação em que se encontram é algo inimaginável.


Por um lado, é seu pai. Você o ama. Por outro lado, ele pode virar para você e gritar sobre sua aparente incompetência, acusá-lo de roubar seu relógio, reclamar do atraso do jantar mesmo que ele tenha comido há poucos minutos. Ou pior, ele pode nem saber quem você é.


Pessoas com demência podem se tornar um peso para seus familiares, mas nunca queremos admitir isso porque as amamos. Zeller, felizmente, nunca julga Anne por seus momentos de fraqueza, por querer minutos de paz, mas também deixa claro que ela ama Anthony profundamente, tenta de tudo para que ele esteja bem, tem uma paciência gigante e, ao contrário de seu marido, não culpa o idoso pelo que ele está passando.


Ela me lembra muito minha mãe, que acompanhou meu avô antes de sua morte e fez o mesmo com minha avó, que antes de ser levada pela covid-19 também estava esquecida e, muitas vezes, cansativa. Minha mãe é um exemplo pra mim. Ela é uma guerreira. Ela nunca deixou de amar seus pais, mesmo quando eles se tornavam uma fonte de grande sofrimento. A atuação de Colman captura cada peculiaridade que vem dessa jornada dolorosa. O coração quebrado quando o pai usa palavras duras sem perceber, a felicidade nos vislumbres de lucidez e o sentimento de pequinês e solidão diante da situação. Entre trabalhos como esse, Fleabag, The Crown e A Favorita, é difícil imaginar uma atriz operando na mesma estratosfera de Colman atualmente.


Essa mesma realidade é apresentada em outros personagens, seja na forma como o marido de Anne trata Anthony, a incompreensão e raiva que surge de lidar com uma pessoa demente, ou na cuidadora Laura (Imogen Poots). Zeller faz questão de destacar aqueles que, por vocação, decidem enfrentar a demência, gente com um coração bondoso e paciente o suficiente para entrar nesse cenário, na casa de outra família, com a pura intenção de ajudar. Homens e mulheres cuja simples existência se torna um alento.


E quanto há Anthony, seja o personagem ou o ator, não falta nada. Zeller escreve um personagem que mostra todo o potencial de um idoso cuja mente está falhando. Como eles podem nos machucar, como podem nos impressionar, nos confundir, nos amar e, acima de tudo, como eles estão sofrendo.


Anthony é vulnerável a ataques de sua própria mente e até mesmo de outras pessoas. Ele está passando por algo que só não pode ser chamado de indescritível por causa de obras precisas como Meu Pai, que capturam a essência e o dia a dia do seu tema com muita clareza. Meu Pai entende, e acerta em tudo, inclusive ao demonstrar o momento em que Anthony sai de estar confuso por esquecer onde guardou o relógio para entender que o esquecimento não é normal, que há algo errado, que ele tem um problema. É de partir o coração, e Hopkins, entregando o que pode ser a melhor atuação de sua incrível carreira, acompanha cada segundo de raiva, dúvida, alegria e desespero que a demência traz.


Meu Pai é um retrato dolorosamente preciso de uma realidade complexa e difícil. Do roteiro à fotografia, Florian Zeller acertou em tudo.


Nota: 4.5/5

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