Cannes: Men - Crítica do Chippu

Cannes: Men - Crítica do Chippu

Alex Garland cria terror bíblico, Cronenbergiano e perturbador em sua exploração de misoginia e trauma

Guilherme Jacobs
23 de maio de 2022 - 7 min leitura
Notícias

Alex Garland talvez seja o cineasta mais bíblico da atualidade. Depois de começar a dirigir seus próprios roteiros, Garland tem examinado constantemente a ideia de paraíso perdido, pecado, eternidade e o constante desejo humano de se tornar como Deus. Ele também tem um fascínio por mulheres, colocando protagonistas em ambos Aniquilação e sua série Devs, e mostrando a criação de uma em Ex Machina. Logo no começo de Men, quando Harper (Jessie Buckley) pega uma maçã da árvore no jardim de uma casa de campo britânico onde vai passar duas semanas para se manter longe do mundo, a imagem é óbvia e intencional. O diretor está reunindo seus dois maiores interesses numa metáfora visual só.


Men, terceiro longa-metragem dirigido por Garland, é também seu mais íntimo e menos preciso. Harper decide ir para uma linda casa de campo isolada do mundo para tentar se distanciar do sofrimento de ter perdido o marido, e ao chegar lá é apresentada ao talvez bonzinho demais Geoffrey (Rory Kinnear). Grama, lindas florestas e até estações de trem abandonadas colaboram para construir a paisagem idílica ideal para sua cura. Quando, porém, ela se depara com um homem pelado vivendo na mata (também interpretado por Kinnear), as coisas começam a ficar estranhas. É só o começo. Kinnear é colocado por Garland em todos os papéis masculinos (com exceção do ex-marido de Harper, vivido por Paapa Essiedu em flashbacks) e as bizarrices crescem em incrementos tenebrosos. Quando Harper decide fugir, é tarde demais. Essa força assustadora, em seus vários corpos mas com um único rosto, já está dentro da casa.


Os temas de Men são óbvios, mas suas interpretações certamente terão variações porque, como acontece em diversos trabalhos de Garland (talvez com exceção de Devs), muito é deixado implícito. Ambiguidade é uma das mais poderosas armas do diretor na hora de cativar atenção.


Num nível de criação de imagem, ele é elite. Ao lado do talentosíssimo diretor de fotografia Rob Hardy, Garland novamente constrói quadros nos quais a beleza paradisíaca revela, em suas entrelinhas, um horror cósmico, como se algo estivesse aos poucos rastejando em nossa direção prestes a nos engolir de forma lenta e metódica. As ideias postas em tela pelo cineasta criam mais sensações sem oferecer muitas respostas. Escalar o mesmo ator em todos os papéis masculinos sugere uma maldade sempre presente no interior do homem, uma capacidade para o mal e um desejo carnal do qual não podemos escapar. O fruto do pecado original e como mulheres são vistas dentro dessa perspectiva corrompida. Não espere, porém, uma explicação para tudo.


Há, no entanto, momentos didáticos nos quais os personagens fazem as conexões temáticas em raros exemplos de Garland preferindo mostrar, e também dizer. Em entrevistas recentes, o diretor revelou ter trabalhado no roteiro de Men antes mesmo de lançar Ex Machina e, segundo Buckley e Kinnear, teve uma abordagem colaborativa, mudando acontecimentos e alterando conceitos durante a filmagem. Consequentemente, Men mostra o cineasta de forma mais solta, sem o foco afiado com o qual muitos o associam. Talvez revelando um Garland menos maduro em seu desenhar, borrando um pouco seus traços outrora impecáveis. Seus trabalhos anteriores convidam à especulação, mas este parece precisar dela para se elevar além da proposta no centro de sua premissa sobre misoginia, abuso psicológico e sexual, e as dinâmicas - de medo e atração - entre os sexos. Tudo isso está lá, e é claro. O que o diretor fará, agora? Ele não parece ter certeza.


Como resultado, Men às vezes parece circular o mesmo lugar. A conversa nunca é levada muito além da primeira frase. Eventualmente o filme fica satisfeito com seu status de peça atmosférica, inclusive utilizando o talento de Kinnear para comédia (Men é mais divertido do que parece) como forma de desarmar a audiência e levá-la até este lugar, onde Garland pode começar a girar a faca com sequências cada vez mais horripilantes e desconfortáveis. Seja através do uso de efeitos especiais - às vezes, intencionalmente estranhos e artificiais - ou com toques de body horror que orgulhariam David Cronenberg. Apesar de não contar com uma profundidade textual nos níveis de Ex Machina e Aniquilação, Men é tão capaz de nos hipnotizar quanto eles. Dessa vez, seus métodos são sons (a trilha sonora de Geoff Burrow e Ben Salisbury usa até gritos dos atores em suas composições arrepiadoras), imagens e atuações.


Por isso, Buckley e Kinnear são tão especiais. Ela é uma das atrizes jovens mais talentosas do mundo, capaz de controlar cada molécula de suas emoções para pintar seu rosto com as mais diversas microexpressões. Tal domínio significa que quando Harper explode, Buckley parece estar acionando todos os motores ao mesmo tempo. Com ela, nenhuma cena vem do nada. Tudo é construído meticulosamente. Kinnear, por sua vez, é ao mesmo tempo o coringa e às deste baralho. Ele é genuinamente engraçado, mas também causa os tipos de risadas imediatamente seguidas por sobrancelhas franzidas, olhares laterais buscando respostas. O riso desconfortável. Assim, quando decide ativar o modo atormentador sem restrições, ele transborda terror.


Apesar de rodear o mesmo terreno por tempo demais, Men eventualmente chega a uma conclusão tempestuosa na qual Garland, Buckley e Kinnear parecem estar se desafiando. Testando limites. O quanto mais eles conseguem nos colocar dentro desse pesadelo? O diretor se supera na expressão perturbadora de sua criatividade desgraçada enquanto ambos atores pulam de olhos bem fechados nessa loucura. A hesitação inicial desaparece e Men se encerra como um circo de horrores onde cada participante reforça (talvez até demais) o seu tema principal.


3.5/5

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