Mank - Crítica do Chippu

Mank - Crítica do Chippu

David Fincher embarca em sua jornada mais ambiciosa até aqui.

Guilherme Jacobs
14 de dezembro de 2020 - 10 min leitura
Notícias

De vez em quando acontece isso. O crítico encontra uma obra que vem carregada de tanta bagagem e expectativa que é necessário tempo para digeri-la. Muito pensamento e a apreciação da arte mais de uma vez antes de colocar uma palavra na página. Mank, o novo filme de David Fincher, que estreou no começo do mês na Netflix, é - para usar as palavras de Orson Welles (Tom Burke) no filme - uma das maiores baleias brancas que tive que caçar.


Isso porque Mank em si caça uma baleia branca enorme há tempos. Talvez a maior de todas no cinema norte-americano. Fincher, baseando-se no roteiro escrito por seu pai, Jack, e revisto pelo próprio David junto com Eric Roth, está se propondo a falar sobre a criação de Cidadão Kane através dos olhos do seu roteirista, Herman J. Mankiewicz (Gary Oldman). A ideia, é claro, gerou polêmica e discussões, especialmente porque Jack Fincher parece ter se baseado no ensaio "Raising Kane", da lendária crítica de cinema Pauline Kael, no qual a autora tenta ao máximo tirar o mérito de Welles e colocá-lo apenas em Mankiewickz. O longo texto foi muito debatido e desmentido, e a versão final de Mank não segue a mesma linha de Kael, apesar de estar receber duras críticas por sua representação de Welles.


Mank carrega tudo isso, e escrever sobre Mank carrega esse peso. Talvez por isso eu tive que assistir ao filme mais de uma vez antes de chegar à uma conclusão. Apesar do que eu citei acima, Mank é menos sobre as brigas por crédito do roteiro de Cidadão Kane - que acabou dividido entre Mankiewickz e Welles, e deu a ambos um Oscar - e mais sobre o sistema de Hollywood da época, a responsabilidade de fazer filmes, e aqueles que usam o poder do cinema para seu próprio ganho. Olhando por essa lente, está claro por que Fincher se interessou tanto pelo projeto.


Fincher é, afinal de contas, o diretor mais cético de Hollywood. Desde sua experiência em Alien3, quando os produtores infernizaram sua vida e tiraram seu controle criativo, ele tem sido um rebelde cínico. Ele é o homem que disse acreditar que todos os seres humanos são pervertidos. Seus interesses incluem serial killers, psicopatas, múltiplas personalidades e programadores gananciosos. À primeira vista, Mank não parece ser seu tipo de filme.


Mas a realidade é que Mank faz total sentido como um filme de David Fincher. A direção fria, distante e calculista quebra a ideia de uma "era de ouro" de Hollywood, levanta o tapete para mostrar a sujeira e mostra que Cidadão Kane foi e continua sendo uma obra relevante para a humanidade. Usando a fotografia digital misturada com técnicas para deixar o filme preto-e-branco, com o visual dos anos 30 - imagem mais embaçada, fade outs graduais e marcas de cigarro na tela - ele recria aquele mundo. Adicione a isso a ótima trilha sonora de Trent Reznor e Atticus Ross, além da fotografia maestral de Erik Messerschmidt e do design de produção impecável de Donald Graham Burt, e vemos esse universo trazido de volta à vida, mas nunca celebrado cegamente. Afinal, ninguém está livre da mira dos Finchers.


Esse é, inclusive, o maior mérito de Mank. Semelhante a Cidadão Kane, o roteiro de Jack usa uma situação presente - Mankiewickz escrevendo Cidadão Kane - para viajar através de flashbacks que vão e voltam no tempo desvendando um aparente mistério. Aqui, a pergunta não é o que é Rosebud, mas por que Mankiewickz insiste em escrever um filme baseado no magnata da mídia William Randolph Hearst (Charles Dance), que ameaçou não divulgar os cinemas que exibissem Cidadão Kane na época, além de usar Louis B. Mayer (Arliss Howard), seu amigo e um dos fundadores da MGM, para tentar eliminar o clássico através de suborno e outras técnicas.


O roteiro aos poucos planta pistas que vão ficando mais claras com o tempo, desde as opiniões políticas e sociais de Mankiewickz até a construção da sua amizade com Hearst e sua amante, Marion Davies (Amanda Seyfried), uma estrela dos filmes mudos que perdeu sua força nos talkies apesar das repetidas tentativas do magnata de usar a conexão com Mayer para mantê-la no holofote. Essa é uma das razões pelas quais Mank recompensa quem assistir ao filme pelo menos duas vezes. Uma vez que você sabe para onde ele vai e quais são seus interesses - mais a relação entre cinema, influência e política do que os bastidores de Cidadão Kane - fica mais claro ver o propósito das cenas iniciais e o que elas estão construindo.


E assim a bagagem vai aumentando. Mas também aumenta minha admiração por Mank, que apesar disso tudo é um filme extremamente prazeroso. Eu já o iniciei uma terceira vez, já revisitei minha cena favorita - Marion e Mank passeando pelo castelo de Hearst numa noite linda que serve como veículo para uma conversa que deve render à Seyfried o Oscar - e suspeito que farei isso mais vezes. Grande parte disso vem da já mencionada direção , mas também é pelo roteiro. Mankiewickz era conhecido por seu humor afiado - foi isso que o tornou interessante para Hearst e iniciou a amizade dos dois - e o filme captura isso. Esse é o filme mais divertido, bem-humorado e engraçado de David Fincher.


Ajuda também ter um elenco de primeira. Oldman, Seyfried e Howard recebem a oportunidade de entregar frases e diálogos de primeira linha, e todos estão à altura da tarefa. Oldman, em particular, nunca foi tão bom quanto aqui. Ele viaja da bebedice ao humor, da análise à melancolia e da genialidade à ofensa com tanta facilidade que, apesar de ter o visto em diversos filmes, o ator simplesmente sumiu dentro do personagem. Não há elogio maior. Seyfried também merece destaque por trazer uma leveza à todas as cenas de Marion Davies sem nunca se deixar virar apenas um alívio cômico, uma loira burra ou uma irritação.


Howard, Dance e Tuppence Middleton, que interpreta Sara, a esposa de Herman, também se mostram muito capazes em seus papéis. O mesmo acontece com Lily Collins como Rita Alexander, uma personagem que podia ter caído na irrelevância mas que se torna um dos corações da história. O que nos deixa, portanto, faltando falar do Orson Welles de Tom Burke. Burke faz um ótimo trabalho capturando alguém maior do que qualquer atuação. Sua voz, presença corporal e entonação chegam o mais perto possível do lendário diretor. Creio que as críticas sobre o tratamento de Welles em Mank vêm mais pela argumentação que Fincher está fazendo aqui do que pela atuação.


E ainda sim, Mank não é um filme anti-Welles. Ele certamente é pró-Mankiewickz mas, como o próprio personagem titular diz no filme, ele "ofereceu uma narrativa perfeita e uma sugestão de destino. Aonde ele [Welles] irá com isso, só cabe a ele.." Fincher nunca está tentando apagar Orson, mas ele está, de fato, argumentando que o diretor virou parte do sistema que tanto detesta - o que é estranho considerando que Welles sempre foi um rebelde e terminou exilado de Hollywood.


Mas talvez seja parte do ceticismo de David Fincher. Talvez essa seja sua visão sobre diretores - incluindo ele mesmo, já que como muitos apontam, o Welles de Burke parece com Fincher - e sobre os verdadeiros heróis do cinema hollywoodiano. Ninguém nunca esteve a salvo das garras desse cineasta. Por que agora seria diferente?


Mank é complexo sem nunca ser maçante. Profundo sem nunca se tornar inacessível. Ele tem muito cuidado com a Hollywood dos anos 30 sem prestar culto à mesma. O filme emula Cidadão Kane sem se deixar prender ao clássico que por tanto tempo foi o #1 da lista de melhores filmes da AFI. Mank é o melhor filme do ano.


Nota: 4.5/5

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