Cannes: Holy Spider - Crítica do Chippu

Cannes: Holy Spider - Crítica do Chippu

Suspense de serial killer iraniano silencia justamente as vítimas que tenta defender ao se perder numa luta entre sua narrativa e seu tema

Guilherme Jacobs
22 de maio de 2022 - 7 min leitura
Notícias

O suspense de serial killer iraniano Holy Spider começa como qualquer pessoa vagamente familiar com esse gênero esperaria. Somos apresentados à Somayeh (Alice Rahimi), uma mulher numa vida de prostituição vagando pelas noites de 1999 na cidade de Mashhad, indo de cliente em cliente, sendo maltratada por homens e buscando consolo nas drogas. Então, ela é levada para a casa de Saeed (Mehdi Bajestani). Este é o assassino em série conhecido como Aranha. Ele a estrangula, se livra do corpo e liga para o repórter de crime com a localização. Já é a nona vítima. Ninguém parece se importar.


Isso muda quando a repórter freelancer Rahimi (Zar Amir-Ebrahimi), recém demitida de um jornal de prestígio por ter denunciado os avanços sexuais de seu editor-chefe, aparece. Determinada e focada, ela rapidamente percebe o quão corrupta e desinteressada a polícia local é, chegando até a teorizar que eles propositalmente não querem resolver o caso. O Aranha está, afinal, acabando com a prostituição. São menos mulheres para policiar, menos trabalho, menos “sujeira” para limpar. Dividimos a primeira hora de Holy Spider entre os esforços de Rahimi para descobrir a identidade do assassino e levá-lo à justiça e os avanços de Saeed para continuar matando, algo que se torna mais e mais frequente conforme ele se perde em sua maldade.


Nessa primeira metade, Holy Spider faz um trabalho interessante, mas inconsistente, de nos colocar próximos a Saeed, muito graças à atuação cotidiana, vulnerável assombrosa e desperdiçada de Bajestani. Às vezes, há uma tentativa de justificar suas ações com base no seu tempo na guerra entre Irã e Iraque e a culpa de sobrevivente resultando de ter passado pelo conflito sem nenhuma cicatriz enquanto vários companheiros se tornaram mártires. Mas o diretor Ali Abbassi, incapaz de decidir um percurso, também se apoia frequentemente na ideia de um homem perturbado e em necessidade de ajuda psicológica. Não há razão para ambas ideias não coexistirem, mas Abbassi, dirigindo seu próprio roteiro (inspirado em fatos reais), jamais traça alguma conexão entre as abordagens, apenas trocando de marcha quando lhe é conveniente.


As cenas de Rahimi, por sua vez, variam entre o cliché e a preguiça, seguindo um percurso previsível e reducionista, transformando a personagem numa mulher unidimensional sem interesses, traços de personalidade ou existência além do caso. Não há nada de errado com uma jornalista focada, já vimos isso em inúmeros filmes desse tipo, mas Rahimi nunca é tratada por Abbassi como algo além de uma ferramenta através da qual ele pode investigar (muito, mas muito pouco) os crimes. A heroína decide se passar por uma das potenciais vítimas do Aranha e rapidamente é colocada frente a frente com ele. Então, numa escolha corajosa, Holy Spider prende Saeed. Somos levados à segunda metade, mais ousada e muito pior, dessa história mal concebida.


Agora, acompanhamos enquanto a população de Mashhad muda totalmente seu comportamento do dia pra noite. Até então, todos os relatos são de que o ambiente é intenso, pais não deixam suas filhas saírem e todos vivem assustados. Depois da prisão de Saeed, porém, as coisas ficam diferentes. Do nada, o assassino ganha apoiadores entre a polícia, comerciantes locais, habitantes de todos os gêneros e idades, e até autoridades. Se ao menos houvesse sementes sugerindo essa potencial troca de atitude, ela pelo menos teria justificativa, mas nem isso é feito. Ele atribui seus crimes à fé islâmica, dizendo ter matado as vítimas no nome de Alá. Como, então, ele pode ser culpado? A escolha de Abbassi de mostrar toda a cidade apoiando o criminoso é uma tentativa vã, mal calculada e ofensiva de criar uma narrativa de silenciamento das vítimas, opressão à mulher e injustiça sistêmica. O problema maior, no entanto, é que o próprio filme é quem faz essa censura.


Acompanhar a perspectiva de Saeed e seus apoiadores realmente tem o potencial para tornar Holy Spider perturbador, mas Abbassi não só a transforma no nosso único ponto de vista - escanteando Raihimi (e a perfeitamente compotente Amir-Ebrahimi) e toda mulher contra os atos do psicopata - como também dirige suas cenas com toques de heroísmo doentio. Quando Saeed recebe garantias de que será inocentado, o diretor cria um clima de alívio. Ao ser traído, o ar fica trágico. Tal traição vem numa reviravolta final revelando o caminho pelo qual Abbassi decide fugir do beco sem saída criado por si mesmo. Manter a proposta de protagonizar Saeed iria contra seu tema, puní-lo iria contra a construção do enredo. Ambas opções são ruins. As chances do filme já foram enforcadas há tempo.


Holy Spider pode ser baseado em acontecimentos verídicos, mas sua apresentação simplória dessa história horrenda de como o sistema iraniano esquece suas mulheres e idealiza a religião se torna absurda, até cômica. As linhas traçadas entre o crime e o fanatismo são forçadas, e na intenção de denunciar os problemas de sua sociedade, o diretor cai num exagero desequilibrado, deixando para trás as pessoas em nome de quem ele decidiu fazer essa obra, que se encerra com uma metáfora óbvia, decepcionante e desesperada por chocar as audiências a qualquer custo. Talvez o choque aconteça, mas não como Abassi esperava.


1.5/5

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