ENTREVISTA: Autora de Iluminadas fala sobre Wagner Moura, narrativas de trauma e adaptação produzida por Leonardo DiCaprio

ENTREVISTA: Autora de Iluminadas fala sobre Wagner Moura, narrativas de trauma e adaptação produzida por Leonardo DiCaprio

Lauren Beukes abre o coração sobre as inspirações para o livro que vira série na Apple TV+ com Elisabeth Moss nesta sexta-feira (29)

Guilherme Jacobs
28 de abril de 2022 - 13 min leitura
Notícias

Em Iluminadas, série da Apple TV+ produzida por Leonardo DiCaprio e estrelada por Elisabeth Moss (Mad Men) e Wagner Moura (Tropa de Elite), a realidade está sempre mudando. Moss interpreta Kirby, sobrevivente de trauma que passou por uma experiência horrível e, agora, não sabe em quem confiar. Quando o responsável por seu ataque ressurge, assassinando outras mulheres, ela precisa encarar fantasmas do passado. Para a autora sul-africana Lauren Beukes, escrever o livro no qual a produção se baseia, e agora acompanhar sua adaptação para televisão, houve uma luta parecida.


A luta, felizmente, não teve relação com a adaptação. "Eu já tive experiências ruins no passado quando entreguei meu bebê - não vou citar nomes - e a pessoa deixou o bebê cair e quebrou ele," ela nos contou em entrevista via Zoom. "Graças a Deus aquela adaptação não aconteceu porque eu odiava a visão dessa pessoa e o que ela estava fazendo.” Com Iluminadas, a experiência foi outra, em grande parte graças à showrunner Silka Luisa.


“Quando meu produtor Michael Hampton me disse que tinha encontrado essa ótima jovem showrunner e que a Elisabeth Moss estava envolvida, eu confiei totalmente na visão delas. Eu tive conversas com Silka antes, conversamos sobre os aspectos principais do enredo e o que eu estava tentando fazer, e eu enviei toda a minha pesquisa pra ela," Beukes adicionou. "Eu conectei com ela imediatamente, eu amei a visão dela."


Não é que Iluminadas seja totalmente fiel ao material original, mas Beukes não é uma daquelas autoras que trata seu texto como sagrado. Em nossa conversa, ela se mostrou - repetidas vezes - aberta à mudanças, desde que elas trouxessem algo de bom. “Há mudanças. Eu acho que precisa haver mudanças porque é uma série de televisão, não um livro," ela admite. "Tem que ser um animal diferente. Mas eu estou muito animada para as mudanças. Acho que ela fez escolhas de estilo e narrativa interessantes, amo como ela expandiu em alguns personagens - Dan, o repórter vivido por Wagner Moura em particular, que é fenomenal. Meu Deus. E também a mãe, vivida por Amy Brenneman.”


Dan passou por uma mudança iniciada pelo próprio Moura. Em entrevista com o Chippu, o ator brasileiro revelou que partiu dele a ideia de mudar a nacionalidade do personagem - originalmente porto-riquenho. Na série, assim como seu intérprete, ele é do Brasil. Segundo Moura, Luisa foi um pouco receosa com essa ideia, mas Beukes a abraçou de braços abertos: "O que é vital para esse tipo de [adaptação] é que você traga sua autenticidade para a obra. Eu acho que o fato dele ter mudado o país de origem do personagem significa que ele conseguiu trazer mais riqueza e profundidade para aquele personagem, e se você pode melhorar algo assim, não há dúvidas. Faça isso."


No caso de Dan, a autora amou o resultado, ao ponto de querer reescrever o livro e adotar a versão vista na adaptação. "Eu amo o que eles fizeram com o personagem. Eu não sei o quanto disso veio dele, mas o personagem é tão interessante e torturado. Nós já vimos o jornalista bêbado antes. Mas ele traz tanta profundidade para o papel, e é lindo, engraçado, adoro a energia que ele tem com o filho - e isso não está no livro," explicou a escritora. “Eu até queria poder reescrever o livro e deixar Dan mais parecido com essa versão.”


Outra mudança grande veio em Kirby. Moss, com 39 anos, é mais de uma década mais velha que a personagem no livro. Por isso, a escolha da vencedora de Emmy foi inesperada. Novamente, Beukes viu a mudança como algo positivo. “Elisabeth Moss é mais velha que a personagem no livro. Kirby tem 24 anos. Mas quantas histórias de mulheres de 24 anos já vimos? Ter uma mulher mais velha interpretando uma sobrevivente de trauma, com sua vida fora dos trilhos, chegando nesse papel com muito mais experiência de vida, e entregando essa atuação com muito mais nuance… Eu não tinha pensado nela porque Kirby tem 24 anos, mas faz tanto sentido. É fenomenal. Acho que se torna outro tipo de história, que talvez seja ainda mais rica e cheia de textura."


“É muito empolgante ver o que outras mentes criam," ela conclui, resumindo seu relacionamento com ver sua obra adaptada. “Tem coisas que eu considero muito importantes no livro que não estão na série. E está tudo bem.”


O Verdadeiro Trauma


Então qual foi a luta? Assim como Kirby, Beukes precisou encarar um trauma do passado - não sofrido por ela, mas por uma pessoa próxima - por causa dessa história. Afinal, trauma é, em si, o tema principal de Iluminadas. Eu pergunto a Lauren sobre a confusão sentida por Kirby nos primeiros episódios. Não podemos entrar em spoilers, mas a realidade da personagem muda constantemente. As coisas às vezes são de um jeito, e subitamente se transformam. Uma das grandes qualidades da série é como ela, ao não explicar de primeira tudo que está acontecendo, coloca a audiência na perspectiva da protagonista. Como ela, não sabemos o que é real ou não. “Eu acho que o que você está falando é o que a série faz tão bem. Essa realidade em constante mudança na qual ela não sabe o que está acontecendo provavelmente reflete muito bem o que é ser uma sobrevivente de trauma, quando o chão parece sempre estar tremendo e você constantemente tenta se equilibrar e entender quem você é e onde você está, porque você passou por essa experiência incrivelmente traumática.”


“Essa história é importante pra mim, por ser da África do Sul, onde há uma taxa de violência baseada em gênero tão alta." No país, em 2009, mais da metade da das mulheres assassinadas morreram nas mãos de um parceiro masculino, e pelo menos 28% dos homens já admitiu ter estuprado uma mulher. O presidente sul-africano, Cyril Ramaphosa, já descreveu a violência contra mulher como uma "segunda pandemia" no país.



De fato, esse tipo de história é importante. Mas o uso do trauma como ponto de partida está cada vez mais questionado. É preciso justificar seu uso. No fim do ano passado, um ensaio de Parul Sehgal no New Yorker apontou como narrativas traumáticas muitas vezes reduzem seus personagens, limitando eles ao acontecimento e transformando “vítima” numa identidade inescapável e até desejada, algo que colore cada aspecto da vida da pessoa, dita suas ações e explica sua personalidade. Quando eu perguntei a Lauren se isso era um cuidado que ela tinha em mente ao criar Kirby, ela compartilhou uma dura e verdadeira história da vida no país. Eu encerro essa entrevista com o relato ela.


“Eu tomei muito cuidado com isso. Era algo muito pessoal pra mim. Em 2011 quando meu livro Zoo City saiu, a filha de 22 anos da minha faxineira foi esfaqueada e molhada com água fervente por seu namorado, e então ele deixou ela trancada no equivalente sul-africano de uma favela. Depois de quatro dias, os vizinhos chamaram a polícia porque ouviam gritos e havia esse cheiro horrível, as feridas estavam infectadas, e havia moscas no ar. A polícia a resgatou, mas ela morreu quatro meses depois.”


“Eu estava falando com a mãe dela constantemente. Eu tinha uma bebê jovem então não tinha como ir no hospital, mas a mãe dela me ligava às quatro da manhã e dizia ‘eu vou levá-la de novo pro hospital porque ela está em agonia.’ Eu mandava dinheiro e… foi um trauma incrível. E ele era horrível. Ele observava a casa. Uma vez o viram do lado de fora da janela. Elas eram pobres e negras, não sabiam quais eram seus direitos. É difícil pra um cidadão normal saber seus direitos, mas pra alguém que não foi educado é ainda mais. Eu tentava explicar que elas podiam ter uma medida restritiva, mas é bem difícil conseguir uma.”


“Eu fui com a irmã da vítima para o tribunal e ela apontou para o cara lá, o assassino. Ele estava lá com sua nova namorada de 19 anos e eu sabia que ele faria a mesma coisa com ela. Eu senti esse sentimento de justiça, que a justiça ia ser feita e este homem ia ser preso pelo que ele fez. Eu ainda acreditava no conto de fadas de Hollywood e da TV, que o cara mal seria pego e preso. Então o procurador nos chamou no seu escritório e disse ‘eu não posso levar esse caso a julgamento’. O relatório da polícia só tinha uma página, era a entrevista com a vítima. Era a palavra dela contra a dele, e ela estava morta.”


“Então ele disse ‘vocês têm duas escolhas: deixam pra lá, ou tentam reabrir o caso pra ter uma investigação de verdade. Exumar o corpo, e entrevistar os conhecidos dela para provar que há uma história de violência doméstica.” E eu como uma branca sul-africana de classe média que tem uma voz e sabe como usá-la para o bem, entrei em contato com jornais, a família fez umas entrevistas mas aí uma semana depois [a família] me ligou e disse: ‘Lauren, nós não aguentamos isso. Nós não queremos exumar o corpo dela. Não queremos responder mais perguntas. Não queremos falar mais disso. Queremos deixar isso pra trás e queremos que você deixe isso pra trás também.’”


“Foi muito difícil pra mim. Ela não teve justiça. Ele ainda está solto por aí. Mas escrever esse livro me permitiu ter um tipo de justiça. Na ficção, você consegue ter justiça de uma forma que é impossível no mundo real.”

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