Cannes: Elvis de Baz Luhrmann - Crítica do Chippu

Cannes: Elvis de Baz Luhrmann - Crítica do Chippu

Excesso artístico de Baz Luhrmann captura o intangível nessa cinebiografia nada convencional

Guilherme Jacobs
31 de maio de 2022 - 8 min leitura
Notícias

CANNES - O que é mais importante numa cinebiografia? Cautelosamente desdobrar a vida de uma figura histórica, passando por seus acontecimentos e fases mais importantes de forma linear e confiar no extraordinário inerente à figura em foco? Ou, como o diretor Baz Luhrmann faz em Elvis, seu filme sobre o Rei do Rock, capturar o mito da pessoa? Aplicando suas ideias mais autorais e sem nunca se render às supostas normas do gênero, o cineasta australiano não economiza em nada na hora de contar a história de uma lenda. O resultado requer o gosto adquirido para as particularidades do homem por trás do O Grande Gatsby, mas para quem tem o paladar, é uma experiência como nenhuma outra.


Claro, Elvis passa por todos os pontos mais conhecidos e obrigatórios da vida de Elvis Aaron Presley (um totalmente dedicado Austin Butler) - sua juventude em bairros majoritariamente negros do Tennessee, sua ascensão como cantor jovem rebelde, o recrutamento para o Vietnã, o auge, especial de Natal, shows em Las Vegas, problemas com drogas. Tudo isso está presente, assim como o relacionamento com o Coronel Tom Parker (Tom Hanks), seu polêmico e manipulador agente, mas essa não é uma cinebiografia tradicional em termos de formato e apresentação. Poucas vezes, Luhrmann nos mostrará os acontecimentos de um período específico sem entrelaça-los com vislumbres do passado, ou futuro, do cantor. Há montagens, telas divididas e composições intencionalmente artificiais sempre dotadas da textura idiossincrática do diretor. Quando as autoridades tentam restringir seu gingado sexual, Elvis, o cantor, diz que só consegue cantar se movendo. Assim como ele, Elvis, o filme, está sempre em movimento.


Parker é o fio ligando todas as partes desse mosaico. Luhrmann utiliza o agente do cantor como narrador, abrindo a obra com sua morte já na velha idade e voltando no tempo para mostrar a ascensão de Presley de sua perspectiva. A proposta tem prós e contras. De um lado, partir do ponto de vista de um terceiro - ainda por cima alguém capaz de enxergar potencial - significa observar Elvis através de olhos adoradores. Ele vê a energia, a grandiosidade e, claro, a oportunidade financeira. Em contrapartida, somos acorrentados a um personagem que reforça os perigos da abordagem exagerada do diretor. Em parte pela atuação cartunesca de Hanks - lembrando um vilão de desenho animado - e em parte pelo papel acidentalmente cômico do gerente musical, Parker perde todo o aspecto humano. Ele parece estar em outro filme.


Hanks, talvez o maior símbolo de generosidade e honestidade em Hollywood, não foi uma boa escolha. Se Luhrmann pretende transformar seus personagens em ícones, escalar o “vovô” do cinema não é o ideal na hora de justificar a aparentemente inexplicável presença constante de Parker na vida de Elvis. O filme diz, em seu texto e contexto, observar Parker como uma força ambígua. Ele é o grande arquiteto do sucesso do roqueiro, e também manipulou e explorou a família Presley por décadas. Mas seja na atuação de Hanks - transformando-o num vilão caricato sem qualquer sombra de humanidade - ou nas decisões de maquiagem, direção e roteiro, não há coerência com essa ideia multifacetada. Ele é apenas o bicho-papão.


Mas se Hanks sofre com a abordagem mitológica de Elvis, o homem cujo nome está no título deste estranho blockbuster é engrandecido e eternizado graças à visão de Luhrmann. O par de diretor/assunto é inesperado. Em tela, porém, este par inesperado se torna intrínseco ou até mesmo inevitável. Claro, a forma como o cineasta floreia a narrativa usando músicas (do próprio Elvis, mas também de hip hop moderno), cortes rápidos e câmeras-lentas excêntricas será uma barreira frustrante para alguns, uma constante distração e impedimento, mas para quem tolerar ou mesmo admirar os excessos (não há outra palavra) de Luhrmann, Elvis se tornará uma jornada mágica repleta de momentos memoráveis nos quais as qualidades intangíveis de um dos maiores ícones musicais do século 20 estão presentes. Vê-lo cantar “Suspicious Minds”, ouvir sua voz impossível demandando nossa atenção e sugando todo o ar da sala, assistir à sua dança eletrizante sequestrando nossa mente, é especial. Luhrmann reconhece isso. Ao exagerar praticamente todo aspecto do espetáculo, ele quer que façamos o mesmo. Isso não é normal, é lendário. Devemos, então, tratá-lo assim. Não peça por uma estrutura de roteiro convencional, uma edição conservadora ou mesmo um ator padronizado. Estamos falando de um ídolo, uma imagem.


Butler, então, se torna o parceiro ideal para o diretor em sua missão de alcançar essa aura. Nas cenas da juventude do cantor, quando Elvis é apresentado mais inocente, encantado pela perspectiva do sucesso e fama, o ator sofre. Ele não é o melhor na hora de se conter. Fraco em comunicar timidez e hesitação, Butler começa a brilhar quando Elvis Presley perde o sobrenome e se torna o raro tipo de pessoa reconhecível apenas pelas primeiras letras de seu certificado. Quando Elvis o menino some, e Elvis o ídolo surge, a atuação de Butler se torna mais física (suas cenas em shows são, desde o começo, ótimas), mais carregada de mitologia e poder, e o motivo de sua escalação se torna clara. O ator se entrega. Se na primeira metade ele parece mais uma imitação, depois ele se torna uma emulação, um portal através do qual as diferentes proezas e defeitos de um homem maior que a vida podem passar.


Essa é a grande missão do filme. Elvis não está interessado em nos tornar um grande conhecedor biográfico, em oferecer grandes revelações sobre o psicológico de seu protagonista, mas sim em nos transportar para outras eras e locais. Nas escolhas estéticas e narrativas - incluindo evitar tópicos mais polêmicos como a diferença de idade com Priscila Presley (Olivia DeJonge, subtutilizada) e apropriação cultural - Baz Luhrmann quer que nos sintamos como um dos fãs enlouquecidos do cantor cujos braços se arrepiam por inteiros ao ouvir sobre o conselho de homens sábios para tolos que se apressam no amor. Como estes românticos, Luhrmann não tem interesse na sabedoria comum. Ele não consegue resistir.


3.5/5

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