Duna - Crítica do Chippu

Duna - Crítica do Chippu

Majestoso, gigantesco e frio; filme de Denis Villeneuve é uma adaptação digna do épico de Frank Herbert

Guilherme Jacobs
20 de outubro de 2021 - 14 min leitura
Notícias

Denis Villeneuve estava destinado a voltar para o deserto. Sejam os literais de Sicario e Blade Runner 2049, ou os emocionais de A Chegada e Homem Duplicado, o diretor franco-canadense tem um fascínio pela natureza introspectiva e contemplativa da região árida e seca, como ele contou em entrevista ao New York Times. Lá, no nada, você encontra a si mesmo. Talvez por isso Duna seja o épico de ficção-científica perfeito para suas sensibilidades. Grandioso e indiferente, o livro de Frank Herbert é mais Cormac McCarthy do que Star Wars, mas foi uma das obras mais importantes do gênero e inspiração para diversas histórias totêmicas. No seu cerne não estão grandes batalhas ou discursos empolgantes, mas uma visão complexa de sistemas políticos, religiosos e, acima de tudo, emocionais.


O deserto em questão é o do planeta Arrakis, mundo no qual a Especiaria é produzida. De droga recreativa a combustível para viagens interestelares, esta matéria-prima é o que há de mais valioso em todo Império humano pelo universo conhecido. Por isso, quando a casa do Duque Leto Atreides (Oscar Isaac) se torna responsável por administrar e cuidar da produção, eles sabem o perigo no qual se encontram. O Imperador não deseja aumentar o poder e popularidade de Leto, os ex-governantes do planeta - liderados pelo temível Barão Harkonnen (Stellan Skarsgard) - não vão abrir mão do dinheiro tão facilmente e a tribo local, os Fremen, não gosta de visitantes. Em meio à instabilidade política, Paul Atreides (Timothée Chalamet) está passando por um amadurecimento urgente. Além de estar cada vez ciente das futuras responsabilidades, o garoto começa a ser observado pelas feiticeiras Bene Gesserit, das quais sua mãe, Jessica (Rebecca Ferguson, a melhor atuação do elenco) faz parte. Elas acreditam ter encontrado no jovem uma figura messiânica profetizada há séculos.


Este messias tem duas características vistas em Paul; a Voz - uma habilidade Bene Gesserit para fazer pessoas obedecerem ordens verbais - e a Visão, usada para prever o futuro. Seria o menino esta figura de profecia, ou só mais uma ilusão? A resposta, assim como o resto de Duna, é mais complexa.


Apesar das inevitáveis comparações a Star Wars, Duna é de natureza diferente. Há um protagonista em amadurecimento, uma jornada de descobrimento pessoal e um império galáctico perigoso, mas aqui as consequências são muito mais reais. Não há heróis. Assim como o livro, uma gigantesca mas recompensadora leitura de 900 páginas, o filme está interessado em questionar cada uma das decisões de personagens e sistemas governamentais presentes. Esta é uma história séria, sem piadas e com temas pesados. Paul pode usar seu posicionamento de lenda para criar um exército e derrotar os Harkonnen, entretanto, revela a Visão, isso desencadeará numa guerra santa e numa jihad em seu nome no futuro. Qual é o caminho certo?


Não à toa, o Duna de Villeneuve conta com duas horas e meia de duração e adapta apenas a primeira metade do livro, encerrando exatamente no ponto no qual Herbert finaliza a parte inicial do romance. Essa é uma narrativa de proporções épicas. Aliás, este adjetivo, épico, tão abusado e banalizado, é quase um eufemismo aqui. A escala faz jus ao material base. Melhor visto num IMAX, o longa-metragem filmado nos Emirados Árabes Unidos conta com vistas majestosas, efeitos especiais da mais alta qualidade e um escopo assombroso; ao seu lado, as mais caras produções da Disney parecem brinquedos. Villeneuve sabe a importância do impacto visual ao adaptar Duna, e por meio de naves, criaturas, estruturas gigantes e design de personagens, entrega quadro após quadro de energia cinemática visível.


Tanto o design de produção de Patrice Vermette quanto a direção de arte de Tom Brown, David Doran e Karl Probert contribuem para a criação de um mundo digno da imaginação dos leitores. Cada pequeno detalhe está ali. A forma como os tópteros - veículos equivalentes a helicópteros em Arrakis - voam, o vasto deserto cheio de vermes com centenas de metros de comprimento. O figurino de Robert Morgan e Jacqueline West adicionam ao senso de realidade a este mundo tão distante e alienígena. Tudo é retratado com a imponente fotografia de Greg Fraser e a tremenda trilha sonora de Hans Zimmer. Duna demorou décadas para receber uma adaptação fiel, e a impressão é que Villeneuve quis compensar os fãs pela longa espera criando um mundo à altura do legado da obra literária.


Este mesmo comprometimento inabalável está no tratamento da narrativa, uma reflexão sobre os perigos do poder. Seja vindo da exploração de recursos naturais (e consequentemente do povo que deles depende), de manobras políticas ou, o mais perigoso de todos, da transformação em redentor, os poderosos nunca são bem vistos por Duna, e com razão. Em seu rastro estão destruição, areia e fogo. Paul se encontra numa encruzilhada, capaz de obter devotos fiéis e liderar uma rebelião contra os Harkonnen e o Império, mas ciente, graças à Visão, das consequências desta abordagem: mortes por todo o universo conhecido. O custo da liderança e o peso dessas decisões são o tema central. É possível se tornar um líder e não continuar o ciclo de violência? Sabendo da existência futura do jihad, ele será capaz de evitar o derramamento de sangue?


Basta olhar as notícias para notar o perigo de figuras redentoras cujo discurso transforma política em religião, arrebatando seguidores fiéis dispostos a cometer atrocidades em seus nomes. Duna reconhece o perigo disso na clássica jornada do herói. Salvar o mundo, se tornar seu maior herói, provavelmente não vai terminar com celebrações e romance, mas sim com mártires e sacrifícios.


Estas questões são tratadas de maneira implícita. Villeneuve normalmente favorece a introspecção a discussões exaltadas, debates internos ao invés de discursos exteriores. Nesse sentido, Chalamet é uma escolha certeira. Conhecido por atuar em papéis de jovens atormentados ou assombrados por um peso emocional, hora fruto do seus arredores e hora vindo de um emocional perturbado, o ator se encaixa com Duna, particularmente numa versão tão fiel ao livro. Isaac e especialmente Ferguson são convincentes e cativantes como os pais do menino, equilibrando o amor pelo filho com a percepção de um destino maior para o jovem Atreides, junto com a preocupação derivada dessa certeza cada vez maior. No pouco tempo em tela, Skarsgard transcende o visual marcante do Barão para, especialmente com seu tom de voz e olhar frio, gerar uma ameaça crível.


Assim como o romance, o filme de Villeneuve é repleto de ambição, mas nunca parece impressionado ou fascinado por sua própria glória. Esta frieza, este olhar calculado, dão à construção do mundo um mérito de realismo. Duna não gasta um segundo observando seu próprio tamanho, de boca aberta e baba escorrendo. Ele não se perde na própria fantasia. Este é um mundo cuja escala se torna mais admirável pela forma como ela parece sempre sob controle.


E não se engane, a escala é enorme. Cada veículo, traje ou artefato têm uma história, função, significado e funcionamento. Tudo é explicado, assim como no livro, sem muita exposição (mas há momentos) e sim através da experiência dos personagens, apresentando Arrakis - seu bioma, suas crenças e seus perigos - à audiência através das ações e descobertas dos visitantes da Casa Atreides, como o corajoso Duncan Idaho (Jason Momoa, divertido e charmoso), do brutal e poético Gurney Halleck (Josh Brolin) e do computador humano Thufir Hawat (Stephen McKinley Henderson), e pelo conhecimento local dos Fremen, como Chani (Zendaya), a garota das Visões de Paul, e de seu pai, Stilgar (Javier Bardem), o líder da tribo. Todo o elenco é competente, elevando e dando mais relevância aos seus papéis. Há algo especial quando vemos atores de primeiro nível até mesmo nas cenas menores. Momoa e Brolin, em particular, são puro charme.


Duna está totalmente focado. Isto significa um compromisso ferrenho à história, tema e mitologia sem economia de profundidade e, consequentemente, sem facilitar para ninguém. Dizer que Duna não agradará gregos e troianos é pouco. O ritmo é lento, cuidadoso e arrastado. O mundo vai parecer, às vezes, impenetrável. Para um leitor como eu, muito disso será visto como bem-vindo e fidedigno, mas mesmo os mais fiéis fãs podem reconhecer como a abordagem do livro, recompensadora para os pacientes e curiosos, não funciona tão bem no cinema. Sua aparente indiferença à própria grandeza, às vezes, desemboca numa apresentação monótona e fria. Um quadro a ser admirado, mas nunca engajador. É como um carro luxuoso, cheio de potência numa estrada vazia, mas cujo motorista nunca supera a marca dos 100km/h. A seriedade, nem sempre, parecerá merecida. Duna tem muito respeito pelo seu texto, reconhecendo sua relevância, ou está cheio de arrogância e importância própria?


Isto, sem dúvidas, afeta a falta de conclusão do longa. Essa é a primeira parte e Villeneuve pretende continuar sua adaptação com uma sequência, mas ainda sim, o sentimento de finalização, de uma história contida, está ausente quando os créditos começam a rolar. Emocionalmente, o crescimento de Paul acontece e é interrompido na hora de maior drama e intensidade. Duna termina sem finalidade. Não há um grito de desejo por mais histórias, mas sim a impressão de encerramento do primeiro ato, apenas. A decisão de dividir o livro é compreensível, ainda é necessário, porém, criar algo capaz de funcionar sozinho e independente. Há um fechamento de arco emocional, mas a grande narrativa foi cortada.


Este problema cresce por conta da decisão de manter grande parte do funcionamento do universo no escuro. Na leitura, uma experiência mais devagar, a descoberta é um dos maiores atrativos, revelando aos poucos suas facetas e pormenores. O filme não realiza isso com a mesma eficácia, deixando a audiência com a sensação de algo inacabado, de uma explicação não dada, de uma apresentação com dois slides a menos.


É preciso, porém, reconhecer o feito. Os slides presentes são obras de arte. Poucos são os filmes modernos nesta escala cujos personagens principais não estão armados de martelos mágicos ou garras metálicas, e ainda menor é o número destes cuja complexidade, ambição narrativa e análise emocional é tão grande quanto seu orçamento. Duna, o verdadeiro Duna, alia estes dois mundos. Villeneuve continua aliando histórias e abordagens dignas de indies premiados em festivais com a potência de um blockbuster. Ver as naves entrando na atmosfera, soldados utilizando equipamentos anti-gravidade e escudos especiais e vermes do tamanho de montanhas saindo da areia; tudo realizado com uma boa mistura de efeitos práticos e especiais, vai capturar imaginações, arregalar olhares e abrir bocas. Há momentos nos quais Duna vai arriscar isso tudo, vai parecer entediado com seu próprio material, e você pode se perder junto. Mas então a câmera te mostrará outra coisa memorável, outra criação majestosa e mais uma revelação fantástica. Aí, você estará de volta. O medo passará pela sua mente e só você sobrará.


Nota: 4/5

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