Cannes: Crimes of the Future - Crítica do Chippu

Cannes: Crimes of the Future - Crítica do Chippu

David Cronenberg rabisca com traços de mestre, mas se satisfaz com um esboço no seu terror distópico

Guilherme Jacobs
24 de maio de 2022 - 8 min leitura
Notícias

Do que teremos medo no futuro? Supercomputadores, inteligência artificial, guerra nuclear? Retornando ao Festival de Cannes, David Cronenberg parece acreditar num outro tipo de horror existencial, partindo do nosso próprio interior e saindo para fora. Algo capaz de gerar arte, discriminação e, claro, horror corporal. Em seu perturbado, provocativo e incompleto Crimes of The Future, o diretor de A Mosca e Videodrome ousa imaginar uma humanidade cuja evolução praticamente eliminou a existência de doenças ou dores físicas, mas levou consigo nossa capacidade de existir em nossa própria pele.


O mundo de Crimes of the Future é despovoado, distópico e doloroso. A ausência de dor física permitiu à humanidade se voltar para cirurgias, especialmente plásticas, como demonstração artística, celebrando cortes na pele como fonte de prazer e recompensando o surgimento espontâneo dos neo-órgãos, partes corporais sem propósitos aparentes consideradas objetos de admiração e estudo. O líder nessa área é Saul Tenser (um visceral Viggo Mortensen), cujas apresentações artísticas envolvem a remoção desses órgãos com a ajuda de sua parceira Caprice (Léa Seydoux), uma ex-cirurgiã de trauma.


Caprice tatua os novos órgãos dentro do próprio corpo de Tenser. Depois, utilizando um sarcófago tecnológico chamado SARK, faz a cirurgia ao vivo, controlando a máquina - uma das várias criações dignas das artes de H.R. Giger, junto com uma cama em formato de vulva e uma cadeira esquelética para ajudar com mastigar e engolir - com um joystick asqueroso. Apesar de nunca se tocarem no processo, há um aspecto sexual entre Saul e Caprice no momento. Ambos gemem, fecham os olhos e se contorcem. Uma das admiradoras de Saul, Timlin (Kristen Stewart, tímida na voz mas explodindo nos olhares), confessa para o artista que ao vê-lo sendo cortado, sentiu desejo de ser cortada por ele. “Cirurgia é o novo sexo,” ela diz na frase mais memorável de Crimes of the Future. Essa é uma das muitas implicações geradas por Cronenberg ao imaginar este mundo no qual estamos em constante guerra e adoração com o corpo humano. Essas dinâmicas ficam mais complexas com o surgimento de um garoto capaz de comer e digerir plástico. Sua mãe (Lihi Kornowski, inesquecível em minutos escassos) o vê como uma aberração, enquanto o pai (Scott Speedman, aquém das necessidades do papel) considera o menino um milagre. Saul rapidamente cria um interesse pela história.


Com todos esses ossos de uma história no lugar, mas sem muita ligação entre eles, Crimes of the Future é semelhante a uma cicatriz inchada. Os pontos estão prontos para romper, para revelar um interior igualmente nojento e fascinante, o tipo de espetáculo macabro do qual não podemos desviar o olhar por mais que queiramos. Cronenberg, entretanto, jamais faz a incisão final. Elementos são constantemente introduzidos - um registro nacional de novos órgãos, uma divisão policial para combater a evolução descontrolada da raça humana, um desfile de “beleza interior” - mas nunca concretizados de forma consequente. Eles existem, sugerem ainda mais riqueza para a mitologia futurística vista aqui, mas aí ficam. Se as várias propostas de Cronenberg crescem de sua premissa como membros espetaculares em erupção na carne, sua execução - seja num nível de roteiro ou mesmo visual - as deixa deformadas e mutiladas. Crimes of the Future encerra como se Cronenberg tivesse descartado os últimos 30 minutos, deixando feridas abertas e pontas soltas. O diretor, pelo menos, indica consequências intrigantes para seu protagonista, vivido por Mortensen com o tipo de atuação desconfortável vinda do estômago, repleta de grunhidos e posturas tiradas pelo ator de sua própria espinha dorsal. Um espetáculo físico e palpável no qual, por um segundo, suas entranhas parecem ser visíveis. Como a construção atmosférica, essa performance infelizmente não é complementada pelas outras áreas do longa.


Claro, há diversas cenas grotescas. Fãs do diretor, porém, verão Crimes of the Future mais como uma zona de conforto. Apesar das prometidas ânsias de vômito e saídas imediatas das salas de cinema - algo ainda possível em audiências mais despreparadas - o filme permanece com olhar mais contemplativo, nunca mergulhando de cabeça na piscina de sangue e gosma preparada pelo diretor. Cronenberg mostra seus personagens testemunhando o corpo, suas maravilhas (ou abominações, dependendo do seu ponto de vista), com queixos caídos e sobrancelhas arqueadas. Ele falha, porém, em alinhar essas reações com visões igualmente arrebatadoras. As apresentações de Saul e Caprice decepcionam, sem grandes choques ou declarações artísticas interessantes o suficiente para convencer-nos de sua posição de prestígio dentro da terra arruinada de Crimes of the Future. Isso pode parecer injustificável diante de cenas como a dança interpretativa de um homem com dúzias de orelhas, mas Cronenberg promete, no texto e (pouquíssimo) contexto, a vinda de algo revolucionário. Aqui, a revolução não foi televisionada.


Como Mortensen, Seydoux e Stewart fazem um ótimo trabalho em dar personalidade aos seus papéis unidimensionais, simultaneamente combatendo e reforçando o ar inacabado do trabalho de Cronenberg. A primeira dominando cada aspecto sensual e desamparado de uma artista com uma crescente vontade de se aventurar em novas sensações, como quando ela faz o equivalente a sexo oral com o interior do abdômen de Saul. Stewart, por sua vez, aponta para as consequências de uma sociedade obcecada pelo incômodo, mas é deixada de lado pelo diretor durante longos períodos de tempo. Mais interessantes são as doentias e hilárias Router e Berst (Nadia Litz e Tanaya Beatty, deliciosamente desequilibradas), uma dupla de técnicas cujo conhecimento das máquinas de Saul transcende o intelectual e vira tátil. Menos eficazes são Speedman como o pai do garoto único e líder da causa a favor de novos hábitos alimentícios, incapaz de acompanhar o tom do resto do filme, e Welket Bungué, nunca convincente como o detetive investigando esse grupo e tentando impedir que os humanos evoluem até sua própria destruição.


Todos eles são, por outro lado, reflexo dos grandes feitos e defeitos de Crimes of the Future, um filme cujas aspirações e declarações - engrandecidas pela trilha sonora pulsante de Howard Shore e a sujeira distinta do design de produção de Carol Spier - são sempre superiores às suas realizações. Cronenberg rabisca linhas de mestre, mas se satisfaz com o esboço.


3/5

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