Casa Gucci | Crítica

Casa Gucci | Crítica

Na tentativa de realçar o absurdo, Ridley Scott ofusca o brilho das ótimas atuações

Guilherme Jacobs
24 de novembro de 2021 - 4 min leitura
Notícias

Há um fenômeno comum com pessoas realmente ricas. Elas se perdem na riqueza e se tornam quase incomunicáveis, incapazes de ter uma conversa fluida sem primeiro alguns drinks, ignorantes do quão, francamente, brega suas roupas são, ou de como elas seriam tratadas como piadas se não fosse sua fortuna. Não surpreende então que um dos diretores mais cínicos do planeta, Ridley Scott, botou tudo isso em cena com seu segundo filme de 2021, Casa Gucci. Comandada por um elenco de vencedores e indicados ao Oscar atuando com os dois pés firmes no melodrama, mas totalmente cientes da escolha, essa sátira dos ultra-ricos e análise do poder corruptivo da ganância contrasta seus personagens ridículos com uma narrativa mais séria numa tentativa de realçar o absurdo do estilo de vida aqui representado.


Scott não é um diretor de ironias. Seus filmes vão direto ao ponto (exceto quando forças externas interferem, como em Blade Runner). Alien é sobre o esquecimento de seres humanos em nome do progresso capitalista, O Gângster argumenta que não há espaço para integridade no sonho americano, e recentemente, O Último Duelo mostrou como os gritos de uma mulher podem ser abafados pelas conspirações dos homens. Mesmo em seus trabalhos mais pipoca, como Gladiador e Perdido em Marte, este octogenário sabe exatamente qual caminho seguir. Eficiente em suas poucas tomadas, Scott não brinca em serviço, então é difícil caracterizar a vasta diferença entre o tom das atuações excêntricas de seu elenco - Lady Gaga como Patrizia Reggiani, Adam Driver como Maurizio Gucci, Al Pacino como Aldo Gucci, Jared Leto como Paolo Gucci e Jeremy Irons como Rodolfo Gucci - e o tom mais sério do roteiro de Becky Johnston e Roberto Bentivegna. Casa Gucci sabe da disparidade entre esses dois lados, e assume um risco ao tentar encontrar usar isso ao seu favor.


Por isso, o resultado é uma mistura. Algumas cenas e atuações são elevadas pela maneira como os Gucci parecem de outro planeta. Patrizia entra depois de se casar com Maurizio, sucedendo no plano traçado em sua mente no único instante de hesitação da personagem nas 2 horas e 38 minutos de filme; logo após ouvir o sobrenome de seu futuro marido pela primeira vez. De início, ele vai para o mundo dela. Desinteressado na riqueza e picuinhas do seu clã, o Maurizio de Driver é o único personagem capaz de existir nos dois planos desta história, de conversar com toda classe de pessoa. Ele ainda é humano. Mas quando Aldo vê no sobrinho a oportunidade de ter total controle da marca - algo possível graças à saúde em queda de Rodolfo - os recém-casados se veem no meio de segundas intenções, jogos de poder e crimes.


Patrizia se deleita neste lamaçal. Gaga conscientemente exagera em sua atuação, aumentando gradativamente o nível de absurdo na personagem. Do sotaque inexplicável ao figurino e cabelo igualmentes cafona e elegante (um ótimo trabalho de Janty Yates e Frederic Aspiras, respectivamente), Reggiani nasceu pronta para entrar neste tabuleiro de loucura, mas isso a torna tão vítima da cegueira inerente ao poder, luxo e riqueza quanto os outros membros da família, com exceção de Maurizio. Gaga já falou muito sobre sua tentativa de não deixar Patrizia virar uma caricatura, mas de enxergá-la ainda como uma pessoa. É debatível o quanto desse objetivo específico foi alcançado, mas sua performance é detalhada, armada de um amplo alcance emocional e tão magnética quanto a vitrine de uma Gucci. Maurizio não se apaixona por nada.


Liderado pela atuação transformativa de Driver, a única mais equilibrada do elenco - novamente, uma escolha consciente, especialmente por ser o protagonista ao lado de Gaga - Maurizio segue uma rota quase oposta à da esposa. Inicialmente, ele é mais quieto e incerto, um desajeitado aparentemente ignorante ao mundo no qual nasceu, mas é exatamente esse distanciamento que o permite ser excelente no jogo. Sua frieza e calculismo dão uma perspectiva clara das consequências de suas ações, do efeito dominó de derrubar uma das peças, e mesmo se o seu coração ainda queira paz com os parentes, sua mente conhece a natureza matar-ou-morrer de ser um dos donos da Gucci. No terceiro ato, Maurizio é capaz de enxergar até a verdadeira face de sua mulher, e essa visão clara gera inimigos. Ao seguir uma rota oposta do elenco, de ser menos caricato conforme o roteiro progride, Driver serve como âncora de Casa Gucci, particularmente na segunda metade.


Foi uma escolha necessária considerando o resto do elenco. Irons não tem muito tempo de cena, e podemos quase ver esse clássico ator tentando impedir seu Rodolfo Gucci de se perder no humor ácido de Casa Gucci. É uma tentativa vã, mas ele se adapta ao manicômio. Esse esforço, entretanto, não é necessário para Pacino e Leto, ambos totalmente entregues à natureza escandalosa e ridícula dos seus personagens. Pacino, cuja carreira pós-1990 é muitas vezes determinada pela versão exagerada dele criada na mente de Hollywood, se vê numa pista sem limite de velocidade, onde suas caras e bocas são incapazes de parecer vindas de outro filme. Aqui, ele está em casa. Talvez por isso, pelo volume alto de todos ao seu redor, Aldo seja o papel mais bem trabalhado deste lendário ator em anos. No meio de tanta gritaria, suas escolhas mais quietas se tornam mais visíveis e importantes.


Leto, por sua vez, não faz tais escolhas. Paolo Gucci é uma das pessoas mais inacreditavelmente estúpidas a passar por uma tela de cinema, e Leto não faz questão de tentar humanizá-lo. Pelo contrário, do sotaque tão pesado quanto os quilos de maquiagem para transformá-lo, o ator mais do que se deixa perder no personagem; ele o eleva. Se o texto de Paolo já revela um homem cego pela própria avareza, a atuação cômica de Leto sugere um eterno adolescente cuja cegueira é proposital, alguém encontrando prazer na negação, ignorância e excesso.


Essa é a palavra chave. Excesso. Escrever sobre essas atuações requer um dicionário de hipérboles, cada uma desafia os limites do aceitável até mesmo para uma história tão fora da nossa realidade como essa. Mas ao observar a maneira com a qual Scott, Johnston e Bentivegna constroem essa narrativa, Casa Gucci se torna menos Succession e mais Todo Dinheiro do Mundo. O roteiro não se diverte com a vaidade de suas figuras, um postura ecoada pela direção de Scott, simultaneamente grandiosa em seu escopo mas limitada em seus truques e enfeites, pela fotografia cinzenta e chique de Dariusz Wolski, e pela montagem limpa de Claire Simpson e pela trilha sonora suave de Harry Gregson-Williams.


Só que na tentativa de reter os outros elementos do filme, Scott eventualmente corta as asas dos seus atores. Em cenas nas quais esses personagens batem de cara com o mundo real, atuando ao lado de outras figuras ou lidando com acontecimentos mais pé-no-chão, o dinamismo e o senso de diversão do elenco principal se perde. O diretor cria essas cenas com a intenção de exaltar ambos lados - o excesso e a restrição - e intensificar o contraste entre eles, mas se as atuações são perfeitamente calculadas, o roteiro, especialmente no terceiro ato de Casa Gucci, não é tão cativante e convincente quanto seus protagonistas e antagonistas. Na tentativa de realçar o absurdo, o brilho é ofuscado.


Os outros elementos de Casa Gucci não são, de forma alguma, malfeitos. Seus instrumentos estão afinados, mas Scott nunca consegue juntá-los numa sinfonia perfeita para reproduzir o som que ele imaginou. A cacofonia também tem seus pontos fortes, mas eventualmente se torna frustrante.


Nota: 3.5/5

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