Cannes: L'Envol - Crítica do Chippu

Cannes: L'Envol - Crítica do Chippu

Pietro Marcello permeia realidade com toques de fantasia em sua agradável estreia em francês

Guilherme Jacobs
19 de maio de 2022 - 7 min leitura
Notícias

CANNES - Pietro Marcello está se imergindo na cultura francesa. Abrindo o Quinzena dos Diretores, festival paralelo a Cannes, seu novo filme L'Envol (Scarlet, em inglês) - um drama de amadurecimento inspirado no livro As Velas Escarlates de Alexander Grin - marca a entrada do diretor italiano no cinema francês. Que lugar melhor, então, para estreá-lo do que na Croisette em seu período mais badalado do ano?


L'Envol acompanha o crescimento de Juliette (vivida por Juliette Jouan na fase adulta) desde sua infância no período pós-Primeira Guerra Mundial até a descoberta do amor em 1939, logo antes da Europa ser jogada em outro conflito bélico. A primeira metade do longa, porém, pertence ao pai da garota - Raphaël (Raphaël Thiéry), um veterano de combate que retorna à sua casa com um olho cego, uma perna machucada e viúvo. Para piorar, Juliette pode nem ser sua filha por sangue. A mãe da menina foi estuprada.


Raphaël passa os primeiros anos depois de retornar aprendendo a lidar com um mundo no qual ele não encontra lugar. Com certa dificuldade para se conectar com Juliette, um desejo de vingança contra o homem que estuprou sua esposa (e, claro, colocou a culpa nela) e dificuldade para manter-se empregado, ele se vê sem grandes razões para sorrir. Thiéry é uma força magnética no papel. Semelhante a uma versão live-action de um personagem de desenho animado (como o pai em Luca, por exemplo), ele se torna o centro de inúmeros closes de Marcello enquanto o diretor destaca suas feições distintas, olhos igualmente tristes e carinhosos e mãos que, apesar de parecerem vir de um ciclope, são dotadas de incrível cuidado e precisão, tornando-o o melhor artesão da cidade. Thiéry, simplesmente, não parece um ator. Isso não é um comentário sobre sua beleza ou charme, mas sim um elogio à maneira como ele transcende atuação e mergulha no papel. Ele, por exemplo, não parece ter sido vestido num camarim. Ele só se veste assim.


Aos poucos, Juliette vai ganhando mais e mais destaque. Ainda adolescente, ela cruza caminhos com uma suposta bruxa local que promete, em nome de um sapo resgatado pela menina e devolvido ao seu pântano, que seu sonho de um navio com velas escarlates cruzando o céu se cumprirá. Conforme ela cresce e se torna a mais bela e desejada jovem da cidade (e, consequentemente, passa a ser assediada pelos rapazes locais), os limites entre magia e realidade parecem estar se dissolvendo, sem nunca cruzarem. Tal sentimento é perfeitamente comunicado em toda a direção e composição de L'Envol.


L'Envol nunca se torna explicitamente um filme de fantasia. A magia existe de forma adjacente. Ela está em todo canto da obra - na decisão de deixar os atores principais usarem seus próprios nomes, nas cenas nas quais Juliette se perde cantando - mas sempre de maneira implícita.


Marcello explora esse borrão entre fato e fantasia de diversas formas. Com a ajuda da fotografia de Marco Graziaplena e a produção de Christian Marti, o cineasta constrói uma história que é tanto real quanto surreal, filmando em 4:3 e enfatizando closes para sempre sugerir a existência de algo invisível, de um mundo além dos nossos olhos mas sempre ao alcance dos sonhos. Basta virar mais uma esquina, olhar um pouco mais para o lado, e encontraremos essa magia. Situar a narrativa entre as grandes guerras permite ao diretor observar um período quase perdido na Europa, quando a forma como a vida era entendida e vivida estava mudando, quando o senso de possibilidade se tornou mais flexível. L'Envol pega a tristeza pós-Primeira Guerra e a permeia com o toques de um livro de conto de fadas.


Agora uma jovem adulta, Juliette se encontra com um rapaz aventureiro chamado Jean (Louis Garrel), com quem desenvolve um romance. Marcello sabiamente subverte a ideia de um príncipe encantado - Juliette é quem inicia o primeiro beijo, e o jovem precisa ser regatado por ela numa das sequências finais - mas o tempo gasto no relacionamento dos dois se torna frustrante tanto por significar menos tempo de filme com Raphaël e, especialmente, porque o cuidado com o qual o diretor cria os outros sentimentos de L'Envol não está presente na história de amor. Nunca nos convencemos da paixão entre os dois. Garrel e Jouan são ambos ideais para os papéis, cada um incorporando a beleza, inocência e charme esperados de personagens assim - mas o material não os acompanha. Por mais que eles encontrem química no olhar silencioso, o abrir de suas bocas denuncia a fraqueza do diálogo amoroso dado para os intérpretes.


O casal acaba ganhando uma característica meio noveleira. Esse sentimento melodramático é ecoado em alguns momentos na direção - alguns movimentos de câmera, especialmente zooms, destoam amargamente da obra - e do roteiro, mas talvez ciente do que é o verdadeiro coração da história, Marcello guarda as cenas mais emocionantes entre Jouan e Thiéry para os últimos minutos, aproveitando a oportunidade para pontuar como perdemos a capacidade de sentir magia quando crescemos e a vida fica povoada de luto, dívidas e decepções. "Tudo que temos é esperança," Raphaël diz para consolar sua filha. A esperança dela é recompensada, mas talvez fosse mais importante para a protagonista (e para o filme) buscá-la em outro tipo de amor.


Mas se Marcello vê L'Envol como um conto de fadas no qual nunca vemos as fadas, então a natureza mágica do final, um que mostra acreditar na realização de sonhos, mas nunca como os imaginamos, é mais do que perfeita para a obra.


3.5/5

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