Cannes: Broker - Crítica do Chippu

Cannes: Broker - Crítica do Chippu

Gentil, triste e emocionante, filme de Hirokazu Koreeda explora famílias inesperadas

Guilherme Jacobs
31 de maio de 2022 - 8 min leitura
Notícias

CANNES - É difícil ser uma pessoa quebrada. Sentir o abandono, a rejeição e solidão provenientes de uma falha muitas vezes invisível em nosso ser. Algo que somos incapazes de identificar. Por que somos deixados para trás? Falta alguma coisa para sermos desejáveis, ou ao menos tolerados? Broker, o gentil, triste e lindo novo filme de Hirokazu Koreeda é protagonizado por uma série de pessoas assim. Gente que, como vidro derrubado, foi estilhaçada e agora se vê perdida no quebra-cabeças da vida, sem lugar para encaixar. Mas a magia dessa emocionante jornada sobre famílias encontradas pelo caminho está ao reconhecer o quão especial é o momento no qual nossos vazios são preenchidos pela ânsia por conexão de outro alguém. Alguém tão familiar com essa ausência quanto nós mesmos.


Koreeda está interessado em famílias, mas não de um jeito tradicional. Se em seu premiado e celebrado Assunto de Família, o cineasta explorou como muitas vezes é necessário a força de todo o núcleo para ajudar a salvar um de seus membros de si mesmos, Broker mostra como é desafiador para diferentes pessoas formar essa unidade. Com diretor japonês e elenco sul-coreano, o longa explora justamente a ideia de combinações complementares. Broker constata a dificuldade de reencontrar a capacidade de confiar, amar e perdoar (e aceitar perdão) quando nossa vida é recheada de decepções, mas também como esses laços, uma vez formados, se tornam praticamente inquebráveis, sobrevivendo o tempo e distância graças à capacidade para compreensão e graça provinda da experiência com o sofrimento. É poderoso reconhecer no outro um olhar de quem, mesmo não estando exatamente na mesma situação, sabe pelo que estamos passando.


Quando So-young (uma reveladora Ji-eun Lee) deixa seu bebê numa Baby Box - caixas colocadas em igrejas para pais que não desejam, por alguma razão, criar seus filhos colocá-los para adoção de forma rápida e anônima - ela esperava se isolar ainda mais. Mas depois, arrependida, ela retorna. Em sua vida de prostituição e maltratos, é raro ter afeto e carinho, então talvez essa criança ofereça a ternura pela qual ela tanto anseia, mesmo se, como mãe, ela não tenha condições de criá-la. O neném já se foi, não adotado, mas levado pela dupla Sang-hyeon (Song Kang-ho) e Dong-soo (Gang Dong-won), ambos voluntários nesse centro. Ocasionalmente, eles levam os recém-nascidos deixados na caixa e os vendem para casais com recursos para comprá-los e sem paciência para a longa fila burocrática no processo para adotar. Inicialmente, os dois parecem visar apenas o lucro, mas ambos parecem ter outros motivos - muito mais generosos e nobres - por trás disso. O mesmo é verdade na vida da detetive Soo-jin (Bae Doona), dedicada a investigar e prendê-los, mas aparentemente relutante em impedir que esses bebês encontrem casas.


So-young decide não entregar Sang-hyeon e Dong-soo à polícia, mas com a condição de que ela vá com eles na busca de um casal merecedor de seu filho. Não basta ser uma família rica. Ela precisa saber que o bebê será amado. Então, esse trio parte numa jornada pelas ruas da Coreia do Sul - indo de orfanatos para hotéis - enquanto Soo-jin os persegue. Aos poucos, os traumas e cicatrizes do grupo são revelados. Entre pais ausentes, casamentos desmoronados e frustrações familiares, cada personagem representa formas diferentes mas semelhantes de desamparo, e por isso, a princípio, reagem com raiva à jornada. Como uma mãe pode desejar abandonar seu filho? Por que não abortar a criança antes do nascimento? Conforme a verdade sobre a gravidez de So-young, os passados de seus “sequestradores” e os motivos da policial vêm à tona, os membros dessa inesperada família não conseguem evitar se ver no outro. Eles passam a enxergar o desespero, e não resistem à oportunidade de estender a mão para o próximo. Koreeda, de forma similar, trata seus personagens com humanidade e cuidado, buscando nunca julgá-los, mas também não evitar suas falhas. Ele nos mostra os erros de cada um, mas também destaca os sistemas (institucionais ou psicológicos) por trás de cada tropeço, apresentando pessoas não como seres binários mas sim como vidas, dignas de serem vividas. A rejeição, o diretor argumenta, não é motivo o suficiente para alguém não merecer nascer, amar e crescer.


Em sua direção, e com auxílio de uma simples mas eficaz trilha sonora, Koreeda milagrosamente dribla o melodrama e a superficialidade para entregar uma obra honesta, sem um pingo de ceticismo em relação ao espetáculo único de ver alguém descobrindo seu lar - seja ele físico ou espiritual. Tal transparência significa que algumas adversidades - como a família do pai do bebê de So-young tentando recuperar o bebê à força - se tornam distrações desnecessárias. Não é preciso criar drama quando sua narrativa já é centrada em humanos. Por natureza, uma espécie dramática.


Sem vergonha dessa perspectiva genuína, Broker pede a cada ator para desligar as aparências, atuar sem nunca fingir, e eles constantemente se mostram à altura do desafio. Kang-ho, cuja face comunica mil e uma emoções em cada expressão, sublinha um ótimo senso de humor com traços melancólicos de alguém em sintonia com a história na qual se encontra, e brilha ao lado de Ji-eun Lee. A cantora sul-coreana é o coração e alma do filme, uma jovem presa dentro de si mesma mas que começa a se abrir ao finalmente se ver num ambiente convidativo e familiar. Quando ela o faz, Broker parte nossos corações sem nunca apelar para o sentimentalismo barato. Dong-won e Doona, não tão memoráveis mas essenciais na hora de pontuar os temas de Koreeda, crescem quando o diretor pede deles vulnerabilidade e determinação. Seus personagens passam por arcos tocantes ao testemunhar o dilema de So-young, e ambos intérpretes encontram a essência dessas transformações.


Essa parece, na verdade, ser a grande motivação de Koreeda. Em Broker, ele parte numa viagem pelas estradas do coração, dobrando nas esquinas da tristeza, estacionando nas vagas da esperança e seguindo as avenidas de amor para, com cuidado e sem máscaras, mostrar o quão extraordinário é o milagre cotidiano de, em outras pessoas, encontrar reconhecimento, solidariedade e até mesmo alegria. Este filme, de certa forma, não busca ser nada pra lá de especial, porque já percebe em seus defeituosos mas amáveis personagens algo inerentemente inesquecível.


4.5/5

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