Aftersun é uma bela e dolorosa reflexão sobre o mistério da saudade - Crítica do Chippu

Aftersun é uma bela e dolorosa reflexão sobre o mistério da saudade - Crítica do Chippu

Estreia diretorial de Charlotte Wells conta com atuações de Paul Mescal e Frankie Corio para criar linda história de pai e filha

Guilherme Jacobs
8 de dezembro de 2022 - 11 min leitura
Notícias

Há um mistério inerente à mídia analógica. Dentro da era digital, do 4K e dos feeds de Instagram contando cada minuto de uma vida, perdemos a capacidade e até mesmo a oportunidade de preencher buracos, e por um lado isso é bom. Bons momentos são capturados de maneira clara e cristalina. Registros de épocas, lugares e pessoais não são mais limitados à capacidade de um álbum ou disco, e estas bibliotecas quase infinitas cabem em nossas mãos. Mas não há mistério. Aftersun, a estreia diretorial de Charlotte Wells, entende o poder narrativo presente nas gravações borradas de uma câmera digital primitiva, com pixels desfigurando rostos e ruído dando textura à pele, e vê uma beleza melancólica nas dimensões limitadas de uma polaroid, nas informações deixadas de fora pelo enquadramento pequeno. Quantas vezes visitamos as imagens no nosso próprio iPhone com o mesmo olhar atento de uma VHS familiar antiga?

Essa é a mecânica através da qual Sophie (Celia Rowlson-Hall, apenas em breves instantes) revisita uma viagem que fez durante seu aniversário de 11 anos com o pai. A Sophie vista na tela (vividapor Frankoe Corio, ainda intocada pelos tiques de atuações conformistas) vai até o mediterrâneo passar uns dias num resort não tão bom, mas transformado num ambiente inesquecível em grande parte pela presença de seu querido pai, Calum (Paul Mescal), por sua vez prestes a celebrar seu aniversário de 32 anos. Jovem o suficiente para ser confundindo com um irmão, mas velho o suficiente para começar a sentir uma espécie de contagem regressiva na sua juventude, ele não tem muitas oportunidades para estar com a filha, e por isso, ainda que de maneira atrapalhada, se esforça para aproveitar as férias e o tão precioso tempo juntos. Mas, por trás do sorriso de Calum, há algo.

Sophie não está revisitando as filmagens daquele verão por pura nostalgia, a não ser que interpretemos a palavra como Don Draper ensinou e pensemos nela como a dor de uma velha ferida. O doloroso retorno à casa (ao pai). Ela está atenta para o mistério, para os elementos além dos quatro cantos, para o que sua versão de 11 anos deixou passar. Sem nunca explicitar, Wells deixa claro qual é o estado da relação de Sophie e Calum no presente, e mesmo nunca exteriorizando o que exatamente ela espera encontrar nessa jornada pelo passado, a diretora nos diz tudo sobre qual foi o evento transformador em sua vida, e como ela agora tenta contextualizá-lo. A Sophie adulta, descobrimos, está revendo as fitas em seu aniversário, talvez agora completando a mesma idade do pai naqueles vídeos, e procura por algum detalhe antes despercebido, por uma resposta para a escuridão de seus sonhos, nos quais ela tenta uma última dança entre pai e filha.


É uma experiência curiosa, notar o sofrimento de um pai. Em parte por uma idolatria inocente típica da infância e em parte por um medo de um mundo no qual sua figura de segurança também está ameaçada, buscamos fugir deste conhecimento, enterrá-lo e ignorá-lo enquanto repetimos para nós mesmos: tudo está bem. Vislumbres do outro lado da cortina, das cicatrizes outrora escondidas, não são bem-vindos. Há preocupação, claro. Tipicamente, porém, a preferência é pela ignorância voluntária. Vamos circular o problema ao invés de encará-lo. Afinal, qual é a maturidade emocional de uma criança? O quanto ela aguenta?

Se a personagem não está pronta para processar tudo isso, Corio milagrosamente comunica cada aspecto deste complexo mosaico sentimental com uma naturalidade impossível em quem já se desprendeu totalmente da ingenuidade da vida antes das câmeras. Seu olhar é curioso, despretensioso, honesto, e se a atriz debutante percebe cada um destes movimentos enquanto os faz, ela jamais nos deixa ter pistas dessa consciência madura. Verossímil é um eufemismo. Sua performance é intocada, irrepetível.

Corio enfatiza um elemento essencial do roteiro da própria Wells, claramente inspirado em suas próprias vivências. Sophie sabe que há algo de errado com seu pai. Assistimos a Aftersun pela perspectiva da menina, mas Wells, oferece preciosos e duros exemplos de sua vida privada do adulto; Tai Chi na frente do espelho, crises de choro, incertezas e atitudes desesperadoras. A diretora — aliada à forma como a montagem de Blair McClendon cria tanto um contraste entre alegria e tristeza quanto engrandece cada sensação através da sua combinação — não nos deixa entrar no íntimo dos íntimos, mas nos coloca de camarote para assistir à janela, filmada simulando celuloide (muito graças à fotografia pastel e tangível de Gregory Oke), de um pretérito nunca resolvido, visível apenas em Standard Definition.

Observamos tudo isso mesmo quando Sophie não pode. Se para a menina há um instinto de negar as rachaduras da fortaleza paterna, para o pai isso é uma questão fundamental. Mas Calum não parece esconder da filha seus demônios simplesmente para poupá-la, numa honrosa e por vezes frustrada tentativa de ter os dias perfeitos com ela, como também para se proteger. Temos a sensação de que ele está perdendo a luta, mesmo não conhecendo seu adversário. Mescal interpreta o homem com poucas instâncias de emoção desmascarada, e estes tipicamente envolvem pranto e raiva. Há risadas verdadeiras, mas até estas são acompanhadas de uma pitada fúnebre, de uma vontade de gritar e acabar com tudo. O ator, porém, segue o instinto de sua diretora, e propositalmente deixa aspectos de Calum além de nossa compreensão. Mescal, Wells, e até Corio, nos convidam a observar as sombras desses personagens, os ambientes pouco iluminados nos quais nossa imaginação terá de preencher os vazios e finalizar o quebra-cabeça. Nunca teremos as peças para terminá-lo, mas mesmo com falhas, temos o suficiente para entender o quadro.

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Wells cria em Aftersun um tipo de ambiguidade difícil de reproduzir até mesmo por cineastas veteranos. A realidade interior de Calum e Sophie é desenvolvida de forma primorosa, e os vácuos deixados no exterior dos personagens nos atraem, deixando espaço para pintá-los com nossas próprias experiências e visões de mundo, nossos lutos e lembranças, mas também guiando nossas mãos para saber onde estão as linhas. Os limites nos quais nossos pincéis devem parar, pois há, ali, uma história. Dali em diante, estamos no território de outra pessoa.

É confortável tratar a ideia de navegar pelos recessos de nossas mentes como algo linear, mas nossas recordações dificilmente representam o que realmente se passou. Há, ali, uma mistura de fatos com imaginação, de durezas com desejos, do que foi com o que queremos que tenha sido, da vida e da fantasia. Vendo através deste prisma, evidências audiovisuais como filmes caseiros e retratos deveriam exercer a função de conectar as pontas soltas, mas Wells (e Sophie, eventualmente) entende o quão falso isso é, particularmente se tratando de imagens antigas. A baixa resolução de uma filmadora, o alcance finito de uma lente, nos oferecem ainda mais segredos.

No século 21, trocamos essas imagens inundadas de representatividade e incertezas por outras, mais definitivas e menos profundas. Construímos narrativas estéticas nas quais o genuíno é deixado de lado em troca do chocante, substituindo o efeito duradouro por uma reação instantânea facilmente computada. Um coração cujo significado é tudo menos amor. Em teoria, o avanço tecnológico deveria encerrar nossas buscas pela verdade, mas temos hoje algo ainda menos revelador. Temos mais máscaras.

AFTERSUN-Still-03-Credit-Sarah-Makharine

Sophie não vai achar tudo. Além das limitações midiáticas impostas pelos equipamentos nos quais aquela memorável semana foi gravada, as corrupções do tempo e dos arquivos deixam ainda mais complicado ver tudo com clareza, mesmo numa televisão moderna. Ela descobre, entretanto, uma espécie de catarse. Se esta lhe deixará plena ou não, também não saberemos, mas ela leva a garota a uma conclusão, à uma última dança (pontuada pelo uso transcendental de uma música de Freddie Mercury) com seu pai, abraçando-o mesmo enquanto ele é empurrado para longe, agarrando-o enquanto ele se dissolve em seus braços, e aproveitando cada segundo desta efêmera reunião. Sophie caminha pela ponte entre o devaneio e o cinema, e ali, entre o real e o imaginado, debaixo da pressão e em cima do prazer, existe Aftersun. Essa mistura é melhor resumida numa palavra exclusiva da língua portuguesa. A combinação perfeita do lembrar e do perder. Saudade.


5/5


Aftersun está em cartaz nos cinemas brasileiros e será lançado em streaming pelo MUBI em 6 de janeiro.

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