After Yang - Crítica do Chippu

After Yang - Crítica do Chippu

Novo drama de Kogonada e da A24 encontra beleza nas memórias mais simples

Guilherme Jacobs
3 de março de 2022 - 9 min leitura
Notícias

Filmes gostam de romantizar memórias. Seja através de celebrações nostálgicas ou exploração de traumas, é comum ver momentos inesquecíveis na vida de personagens (reais ou fictícios) sendo dramatizados para criar uma conexão com a audiência, nos convidando a enxergar nossa própria vida através dessas lentes cinematográficas. A realidade é diferente. Por alguma razão, a maior parte daquilo que memorizamos pode, à primeira vista, parecer aleatório. É nosso rosto no espelho num dia específico, o jeito com o qual o sol iluminou uma rua, o visual de uma comida, alguém que amamos sorrindo, uma parede na qual nos perdemos em pensamentos, o horizonte cinzento à distância numa viagem. After Yang, o novo drama do diretor e artista Kogonada e da A24, reconhece isso tudo. Dentro do contexto correto, um conjunto de lembranças rotineiras e cotidianas pode significar tudo.


As lembranças em questão pertencem à Yang (Justin H. Min), um androide - ou, de acordo com o filme, um tecnosapiens (ou apenas tecno) - adquirido pela família de Jake (Colin Farrell) e Kyra (Jodie Turner-Smith) para exercer o papel de irmão mais velho de sua filha adotiva, a garota chinesa Mika (Malea Emma Tjandrawidjaja) a se conectar com a cultura de sua Terra natal. Numa noite na qual a família participa de uma competição de um jogo estilo Just Dance contra pessoas de todo o planeta, cada um em sua casa, ele começa a apresentar defeitos e, rapidamente, desliga indefinidamente. De olhos fechados e imóvel, ele é indistinguível de um humano morto, e começará a se decompor em breve caso não seja consertado. Jake tira alguns dias de folga de seu trabalho como dono de uma loja de chá, arte pela qual ele é apaixonado há anos, para buscar uma solução, eventualmente levando Yang para um mecânico estranho (Ritchie Coster) pela recomendação de um vizinho (Clifton Collins Jr.), e indo parar num museu gerido por Cleo (Sarita Choudhury), que identifica o problema como irreparável e, agora, apresenta um novo dilema para Jake.


Cleo explica que Yang tem um software possivelmente antiético para gravar certas coisas (efetivamente invadindo a privacidade de seus donos) sem comandos pré-existentes. A ideia dessa função é permitir à sua fabricante entender o que um androide considera uma memória. A surpresa, para Jake e audiência, é o quão semelhante com um humano sua mente é, neste quesito específico.


After Yang, baseado na história curta "Saying Goodbye to Yang" escrita por Alexander Weinstein, desenvolve a maior parte de sua narrativa através da construção de mundo, que neste caso é num futuro próximo onde não só androides existem, como clonagem foi popularizada como uma técnica para, por exemplo, se ter gêmeos, ou reviver um amado. Jake - interpretado por Farrell com um silêncio melancólico e curiosidade paciente, resguardando seus sentimentos ao máximo mas incapaz de ocultá-los por completo - é contra essa segunda tática, mas outros não são. Aos poucos, através de Yang, ganhamos perspectiva. Entendemos mais sobre sociedade. Aprendemos como ele aprendeu. H. Min mantém seu rosto vazio atuando como o tecno titular, mas não por falta de talento. Sua face é simultaneamente um quadro em branco pronto para ser preenchido por novas cores e figuras, e um buraco negro ansiando por ingerir conhecimento, ideias e sentimentos. Ele vive cada momento, e guarda alguns deles.


Kogonada constrói cada ambiente - o carro automático com jardim, as casas minimalistas e de influência asiática, e mais - de maneira artesanal, refletindo o cuidado de Jake com seus chás, xícaras e bules. Seja se apoiando na direção artística oriental de Max Wixom, reforçada pela decoração de set de Joanne Ling e figurino de Arjun Bhasin, ou na fotografia de Benjamin Loeb, transformando cada cena em retratos numa moldura, o cineasta molda um universo digno das lembranças de seus protagonistas, e quando Jake finalmente decide assisti-las numa versão futurista do Google Glass, todos esses elementos ganham uma segunda vida, auxiliados pela montagem de cortes cuidadosamente posicionados pelo próprio Kogonada e pelo contraste de alegria e tristeza da trilha sonora da compositora japonesa Aska Matsumiya. A montagem de memórias de Yang é suficiente para nos contar tudo sobre sua vida sem dizer nenhuma palavra, sem gastar tempo em exposição. Cada imagem traz um sentimento, traz perguntas, algumas respostas, e, acima de tudo, traz significado.


Através dessa explosão de criatividade, repetida algumas vezes no filme mas nunca tão impactante como na primeira, After Yang argumenta a favor do valor de objetos inanimados, de aparelhos, do virtual como parte essencial da vida moderna (e futura). Kogonada vê na tecnologia história e vida, ao ponto de apresentá-la como dona de seu próprio passado e identidade.


Tal sequência reforça o raro otimismo, e até mesmo inocência, de After Yang em relação à tecnologia. Numa sociedade cada vez mais Orwelliana como a nossa, é compreensível e até inevitável. Kogonada levanta alguns questionamentos através da violação de privacidade e o elemento Big Brother dos tecnos, mas parece fazê-lo mais por obrigação do que por genuíno interesse. O cineasta não passa a impressão de ser indiferente a esses problemas, mas os aborda quase como pré-requisitos que precisam ser preenchidos antes de partir para o verdadeiro centro de suas atenções. Ele não está tão preocupado com o rastreamento de seu iPhone quanto está com a organização dos álbuns no app de Fotos.


Nos álbuns de Yang, além do próprio Jake - que descobre ser a figura central de uma das únicas memórias cuja duração é de mais de alguns segundos - há Mika, que Tjandrawidjaja vive com surpreendente profundidade e uma atitude divertida de se achar mais velha e inteligente do que uma criança de 10 anos realmente é, ao ponto de quase nos convencer dessa ideia. Há também Kyra, interpretada com estoicismo e elegância por Turner-Smith, mas pouco servida pelo roteiro, especialmente quando questiona a ausência de Jake enquanto ele tenta encontrar um conserto para o androide. Mas a grande revelação sobre Yang é quando Jake finalmente explora as memórias gravadas durante seu tempo com donos anteriores, dando um novo significado à clone vizinha, Ada (Haley Lu Richardson) e sugerindo uma vida muito maior do que apenas a família de Jake, reforçando a noção de Yang como um ser próprio, dono de sua jornada particular, tão rica quanto a de qualquer homem ou mulher.


After Yang caminha por este passado inesperadamente complexo com mais montagens, cada uma linda, mas sem o mesmo impacto da primeira. Talvez ciente disso, Kogonada encerra o filme no 96º minuto, sem grandes cenas dramáticas, mas com sutileza, deixando em nós uma impressão duradoura. Assim como memórias.


4/5

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