O Mal Não Existe é uma sinfonia sobre ganância e sustentabilidade

O Mal Não Existe é uma sinfonia sobre ganância e sustentabilidade

Em seu novo trabalho, Ryusuke Hamaguchi compõe suspense contemplativo para falar de sobrevivência e instintos

Thiago Romariz
8 de setembro de 2023 - 3 min leitura
Notícias

A aparente lentidão com que os filmes de Ryusuke Hamaguchi se desenvolvem esconde uma série de detalhes que traz sentido ao tema discutido. No caso de Drive My Car, vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 2022, as quase três horas de duração se arrastam como um jogo de xadrez para encaixar as peças de uma narrativa sobre criação e arte, e o que parece enfadonho no começo se transforma em catarse próximo do terceiro ato. Agora, em O Mal Não Existe, filme exibido no Festival de Toronto 2023, o cineasta replica o estilo na busca para compreender a ganância do ser humano em uma trama acerca da sustentabilidade e propósito individual.

Aqui a história é sobre Takumi (Hitoshi Omika) um lenhador que vive numa comunidade pacata no interior do Japão com a filha Hana (Ryo Noshikawa) , e de repente descobre que uma empreiteira vai construir um hotel de camping na região. E ao invés de ficar somente na simples mas importante discussão sobre os males que empreendimentos como esse trazem para todo tipo de comunidade, o roteiro, escrito pelo próprio Hamaguchi, inverte o ponto de vista para os empreiteiros, elaborando sobre a personalidade e motivos que fazem pessoas trabalharem em iniciativas como essa.

Dividido entre a contemplação entre cenários bucólicos e toques de terror pela fotografia e trilha propositalmente subjetivas (as lentes de Yoshi Kitagawa brincam com as cores da mata e flertam com o suspense na montagem de Hamaguchi e Azusa Yamazaki), O Mal Não Existe entrelaça o sentimento zen de viver na mata conectado à natureza com o instinto de sobrevivência que vem do ser humano - esteja ele na cidade ou numa cabana à lenha.

A presença de Hana ao longo do filme mostra bem as amarguras vividas por um pai solteiro, inebriado naquele cenário em que sobreviver significa trabalhar e ajudar os outros, nem sempre a própria família - o que serve como a ponte ideal para o suspense lentamente criado por Hamaguchi.

Se em Drive My Car uma partida de xadrez parecia mais adequada, aqui o processo de composição musical se torna mais relacionável, já que os rompantes da trilha de Eiko Ishibashi marcam os atos como se fossem estrofes de uma música em construção - o que causa também interrupções abruptas e obrigatórios momentos contemplativos, por vezes lentos e aparentemente vazios, como se o compositor estivesse em busca de um sentido para o que acaba de ser jogado na tela.

O processo parece pegar no tranco quando a música se permite ter sons de cidade, da humanidade urbana, responsável por apresentar os aspectos mais sujos (ou naturais) da sobrevivência (ou ganância) do ser humano. E tal qual uma batalha de rimas dentro de uma sinfonia, a dupla que representa os empreiteiros, vivida por Ryuiji Kodaki e Ayana Shibutani, discorre com humor irônico o papel que eles têm dentro daquele sistema, sem qualquer pudor em indagar o espectador sobre os julgamentos feitos até ali.

E como refrão, Evil chega ao clímax unindo todas as pontas soltas pela floresta de Hana, como as penas encontradas por ela na mata. A questão, porém, é que Hamaguchi parece parar o processo inteiro neste momento, como um cantor que desliga o microfone para o público continuar a cantar. A diferença, porém, é que o impacto do silencioso desfecho criam uma série de perguntas que podem impedir a audiência de seguir cantando - o que não significa que não houve efeito na sinfonia composta até ali, pois às vezes o silêncio e a contemplação frente à instintos tão primitivos quanto os mostrados são a resposta mais humana possível.

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