Tudo Em Todo Lugar ao Mesmo Tempo - Crítica do Chippu

Tudo Em Todo Lugar ao Mesmo Tempo - Crítica do Chippu

Michelle Yeoh e Ke Huy Quan entregam as atuações de suas vidas nessa mistura de gêneros multiversal brilhante dos Daniels

Guilherme Jacobs
30 de junho de 2022 - 13 min leitura
Crítica

Uma das combinações mais curiosas de "I Contain Multitudes", de Bob Dylan, é quando o cantor escreve: "I'm just like Anne Frank, like Indiana Jones / And them British bad boys / the Rolling Stones." Eu tenho pensado muito nessa música depois de ter visto Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo, o drama-comédia-de-ação multiversal dos Daniels, a dupla Daniel Kwan e Daniel Scheinert que se tornou o fenômeno mais surpreendente do cinema em 2022. Ali, Dylan alia figuras de importância história com influencias de cultura pop para declarar as diferentes camadas de sua identidade, contraditórias mas complementares. "Em algum lugar no universo esses três nomes devem ter pago um preço pelo que representam e estão presos juntos. E eu não posso explicar bem isso. Onde e quando ou como, mas esses são os fatos," ele disse. Não precisamos de um multiverso da loucura para ver outras realidades. Basta olhar para dentro.


Dependendo de onde você olhar no universo - ou melhor, multiverso - de Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo, a vida de Evelyn (Michelle Yeoh, com o tipo de atuação que, com sorte, um ator consegue ter uma vez na vida) terá sido moldada por 2001: Uma Odisseia no Espaço, Ratatouille ou Amor à Flor da Pele. Ou, talvez, por Bjork. Há também, claro, o passado de sua família. De sua nação. Não esqueça do seu trabalho, sua casa, suas contas. Imigrante chinesa de primeira geração nos EUA, Evelyn está tendo um dia difícil: ela precisa continuar gerindo sua lavanderia, preparar uma festa de ano novo chinês, lidar com o marido cada vez mais decepcionado pelo casamento (um revelador Ke Huy Quan), com a filha com quem ela não consegue se conectar (Stephanie Hsu) e com a decepção eterna de seu pai (James Hong, hilário, intimidador e de partir o coração). Parece muita coisa? Adicione à mistura problemas com impostos na receita federal e um poder maléfico que ameaça destruir toda a existência.


Evelyn, descobrimos, é a única pessoa capaz de impedir uma poderosa força niilista que surgiu em outro universo e agora segue para outras dimensões destruindo tudo e todos. Uma versão de seu marido, Waymond, lhe avisa da ameaça, mas a princípio ela está preocupada mais com Deidre. A agente da receita federal vivida por Jamie Lee Curtis com muito cuidado e humanidade pode lhe custar tudo o que construiu nos EUA. Ao longo de 140 minutos, os Daniels jogam essa personagem, já tão ocupada, para todo lado, por todo o multiverso, e nos mostram como cada um desses problemas - e suas variações em diferentes realidades - são, na verdade, facetas de uma questão só. Evelyn contém multidões.


E, afinal, não é assim com todos nós? Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo expressa as características de sua personagem com vários universos, mas em sua rápida, inquieta e precisa direção, os Daniels enxergam a verdade dessa única Evelyn - descrita pelo variante de Waymond como a Evelyn que mais desperdiçou oportunidades em todo o multiverso - e de todos nós. Somos diferentes pessoas e habitamos diferentes mundos em nosso viver, mas tudo faz parte de uma construção só. No trabalho, em casa, no amor, na família. Cada ambiente e circunstância um universo revelando mais uma parte de nosso ser. Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo reconhece o infinito presente em cada pessoa. Quando Evelyn começa a navegar para versões alternativas de sua vida, os Daniels - através de uma avalanche de visuais criativos e ideias malucas - tornam literal o interior de uma mulher cujos dilemas pessoais são tão importantes quanto o destino da criação. Na verdade, a beleza desse filme, tanto uma representação de déficit de atenção quanto dos nossos diversos interesses, está em traçar uma linha entre esses dois tipos de obstáculos. O emocional e o existencial. Na prática, há diferença para algum de nós?


Nossa transição de mundos, assim como a de Evelyn, pode ser tão pequena quanto decidir ir para a esquerda ou direita, ou tão absurda como partir para uma realidade onde nunca estivemos com o amor de nossas vidas. Seja na internet, navegando em redes sociais cheias de propostas alternativas e sedutoras, ou em nossa própria mente com devaneios cotidianos, constantemente viajamos para mundos paralelos. Transitamos entre os universos de diferentes filmes, séries, aplicativos, obrigações e relacionamentos na prática dia após dia. Em cada um desses cosmos - virtuais, imaginários ou emocionais, mas todos reais de certa forma - problemas e desafios surgem e, aos poucos, parecem se tornar uma coisa só. É a vida.


Yeoh, numa só expressão facial, comunica tudo isso. Tal como Evelyn recebe o conhecimento da existência de outros universos e absorve habilidades de outras variações para conseguir enfrentar o mal, a atriz jamais se limita a uma emoção, um comportamento ou mentalidade. Como se combinasse o espírito de lutadora em O Tigre e o Dragão, o status imponente de Podres de Rico e todos os outros papéis de sua carreira, ela se recusa a ficar atrás do roteiro dos Daniels, carregando cada fala e gesto com múltiplos significados e leituras. Se este é um filme sobre a profundidade de pessoas, sua interpretação não pode ser, jamais, monotemática. Em outros universos, como chef, como mulher com dedos de hot dog, como estrela de cinema asiático, ela segue construindo andares no edifício dessa protagonista e, como num truque de mágica, prende cada variante à mesma pedra angular. Nenhuma Evelyn é a mesma, mas todas são Evelyn.


Ela precisa dar a atuação de sua vida para não deixar o filme ser roubado por Huy Quan. Waymond, que no universo principal está criando coragem para pedir a esposa em divórcio, é, à primeira vista, desajeitado e incapaz de se impor. Mas enquanto Evelyn, e por tabela nós, descobre as suas versões alternativas - um galã digno dos filmes de Wong Kar Wai no universo onde ela é uma atriz, ou um herói do multiverso no mundo onde o mal surgiu - percebemos sua verdadeira face. A fraqueza de Waymond, na verdade, representa um homem ferozmente determinado a se segurar à bondade e gentileza, e serve como antítese para o niilismo do poder que ameaça destruir Evelyn. Huy Quan, um homem que sofreu com papéis racistas em Hollywood desde Indiana Jones e o Templo Perdido, não só expressa os símbolos de seu personagem, como os encarna. Seria eufemismo dizer que ele se entrega ao papel. É melhor definir como uma mudança transcendental. Em minha atuação favorita do ano, ele se torna Waymond, e nunca deixa de ser esse ator injustiçado pela indústria. Ao forçar Evelyn a enxergá-lo com novos olhos, ele nos força a retirar de nossa mente toda caricatura e estereótipos um dia associados a ele. Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo propõe que, ao observarmos o todo, encontraremos o padrão ligando tudo. Se juntarmos todas as peças, o quebra-cabeças mostrará uma imagem clara.


A tentativa dos diretores de abraçar tudo, porém, acaba deixando por trás alguns resquícios. Os altos de Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo - as atuações principais, as cenas de luta e ação, e o desenhar do casal de personagens no centro da história - são todos engrandecidos pela variedade visual e narrativa dos Daniels, mas em outros aspectos, as viagens dos diretores parecem ruídos sem muito conteúdo por trás. No relacionamento de Evelyn com a filha, Joy, por exemplo, a transformação de uma história pessoal numa de consequências universais é feita com menos sucesso. Hsu é uma ótima atriz e faz um trabalho fabuloso aqui, mas sua personagem recebe o fardo de trazer o filme ao seu clímax e fazer os grandes discursos dos diretores. Quando os cineastas rebatem o niilismo - aqui representado por Joy numa atitude de interpretar a eternidade de possíveis vidas como algo que rouba a importância de todas elas - com a conexão final entre Evelyn e Joy, em sua gigante tese de dizer "se nada importa, devemos ser gentis", a tacada perde o impacto. O quebra-cabeças abstrato, dessa vez, não mostra nada além das aparências. Diferente do relacionamento entre Evelyn e Waymond, onde a linha entre os universos pessoais e metafísicos é desenhada com beleza e profundidade, a dinâmica de mãe e filha parece básica. Se no relacionamento amoroso, os atores e o texto executam perfeitamente o malabarismo dessas duas ideias - do íntimo e do cósmico - e das inúmeras conexões entre elas, na história de Evelyn e Joy, Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo não faz o trabalho para merecer as declarações apresentadas como resoluções narrativas.


Os Daniels não reconhecem, então, como casamento de Evelyn e o Waymond é o mais potente núcleo do filme. Neste, essa obra alcança a estratosfera graças ao poder desses dois atores de incorporarem os temas universais de Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo e, simultaneamente, entregarem atuações tão idiossincráticas quanto todo o resto do filme. Apesar do título mais amplo de todos os tempos, esse filme é profundamente específico em sua representação de dilemas de imigração, de crises de meia idade, e também na direção dos Daniels, que aqui se estabelecem como os diretores mais emblemáticos de sua geração ao criarem algo não parecido com um quadro meticulosamente pintado, mas sim um foguete em movimento como um GIF, um videogame ou um anime. Uma mistura de imagens, cores, sons e efeitos especiais com a criatividade infinita de uma geração criada em universos passando por constantes mudanças.


4.5/5

Nota da Crítica
Guilherme Jacobs

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