The Caine Mutiny Court-Martial: Último filme de William Friedkin é uma despedida magnética

The Caine Mutiny Court-Martial: Último filme de William Friedkin é uma despedida magnética

Último filme do diretor de O Exorcista é um intrigante drama de tribunal

Guilherme Jacobs
6 de outubro de 2023 - 8 min leitura
Crítica

A primeira tela nos créditos de The Caine Mutiny Court-Martial, o novo longa-metragem do grande diretor William Friedkin (O Exorcista, Operação França), dedica o filme ao falecido Lance Reddick, que tem nesse drama de tribunal um de seus últimos papéis. Poucos meses após a morte de Reddick, Friedkin também se foi, dando ao projeto uma dupla finalidade; o ator ainda tem alguns trabalhos finalizados, mas o cineasta encerra sua carreira aqui.

Começo essa crítica citando isso por que, apesar de The Caine Mutiny Court-Martial não ser explicitamente sobre morte, ele é um filme sobre outro tipo de perda, além de ser ideal para analisar o que faz os trabalhos de seus artistas, em frente ou por trás da câmera, tão exemplar.

Há uma razão pela qual dramas judiciais tipicamente fazem parte da carreira de tantos realizadores e astros de renome; Sidney Lumet e Paul Newman; Rob Reiner e Tom Cruise e Jack Nicholson; Sidney Lumet, de novo, e todo o elenco de 12 Homens e Uma Sentença. No ambiente limitado, quatro paredes e alguns personagens, as técnicas mais básicas são essenciais, e a excelência na construção de uma imagem ou transmissão de uma emoção fazem toda a diferença no veredito.

The Caine Mutiny Court-Martial é, em termos de estilo, muito simples. Com dois cenários, meia dúzia de atores com falas e grandes seções de diálogo, a despedida de William Friedkin realça o poder de combinar uma boa interpretação com um bom texto, e mais ainda como um mestre pode transformar um corte para um plano fechado em uma odisseia magnética.

Apesar da estreia no glamoroso Festival de Veneza, The Caine Mutiny Court-Martial foi dispensado para lançamento direto em streaming (no Brasil, o filme será disponibilizado pelo Paramount+, mas ainda não há data), oferecendo uma metáfora assombrosa de como a indústria cinematográfica trata suas lendas nesse momento onde tudo é "conteúdo." Isso é visível na produção, particularmente no visual televisivo da obra, fotografada de forma cristalina mas chapada por Michael Grady, provavelmente um misto de deficiência do diretor de fotografia e limitação de recursos.

Mas Friedkin (com a ajuda de alguns diretores auxiliares como Guillermo del Toro) consegue prender nossa atenção independente disso. Cautelosamente enquadrando cada membro do elenco, encenando diálogo após diálogo como só alguém com total controle de atmosfera consegue e recebendo em troca um excepcional trabalho de atores como Reddick, Jason Clarke, Jake Lacy, Kiefer Sutherland, Monica Raymund e Lewis Pullman para povoar os procedimentos com vida e emoção. Friedkin mantém controle, acelera e transforma o tom com as mais rudimentares ferramentas. Quem está em cena? Por que? E como?

O caso em questão é o julgamento do suposto motim cometido pelo tenente Stephen Maryk (Lacy) contra o seu comandante, o tenente Phillip Queeg (Sutherland), durante uma tempestade brutal. Segundo Maryk, Queeg surtou no momento e estava prestes a afundar o navio quando ele tomou o comando. Reddick é o juiz, enquanto Clark e Raymund interpretam, respectivamente, o advogado da defesa e a promotora.

Originado como um livro por Herman Wouk e depois transformado em peça pelo próprio autor, The Caine Mutiny já foi adaptado para filme duas vezes antes. A primeira, A Nave da Revolta com Humphrey Bogart, mostra todo o acontecimento no navio, mas a de Friedkin, assim como o filme para televisão dirigido por Robert Altman nos anos 1980, vai direto para a corte.

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A decisão adiciona tensão e imaginação ao dia do motim, já que não temos total certeza do que aconteceu lá, e Friedkin aproveita cada um desses espaços para inserir tonalidades de cinza no seu roteiro, algo enfatizado pela humanidade que cada ator confere ao seu personagem, incluindo Sutherland e Raymund como os “vilões” e até mesmo as diversas testemunhas que recebem, cada um uma cena (Jay Duplass, Elizabeth Anweis, Tom Riley entre outros), tipicamente sendo chamados para fortalecer a acusação, e depois rebatidos por Barney Greenwood, o advogado vivido por Clarke em seu segundo papel deste tipo este ano (mas em Oppenheimer, ele estava acusando, não defendendo).

Greenwood monta uma defesa primorosa de Maryk, e é pelo exímio trabalho do ator que Friedkin encontra o fio condutor para virar a mesa do filme. Não é spoiler dizer que as atitudes de Queeg são questionáveis e o motim, de certa forma, justificável. O diretor, de certa forma, apela demais para essa realidade ao longo dos vários interrogatórios, mas esse apelo é justificado quando a camada dramática mais profunda — presente nos olhares melancólicos de Clarke e Reddick — vem à tona no epílogo.

Os mais familiarizados com The Caine Mutiny não serão pegos de surpresa quando Friedkin revelar que seu interesse vai além do veredito do caso. Só porque Meryk e seus aliados no tal motim estavam certos naquele dia, não significa que eles são boas pessoas, e o mesmo vale para o falho mas honrado tenente Queeg. Para vencer o julgamento, Greenwood precisou racionalizar isso, e no epílogo vemos o peso emocional dessa escolha.

Ao longo de toda a obra, Friedkin encontra maneiras interessantes de trazer a história gerada após a Segunda Guerra Mundial para os tempos modernos, mas no discurso da conclusão, os desafios dessa atualização se revelam, particularmente quando se trata da presença norte-americana no Oriente Médio nas últimas duas décadas. The Caine Mutiny Court-Martial, porém, não celebra isso tanto quanto lamenta a morte do que existia antes disso. O saudosismo é difícil de engolir, mas a humanidade com a qual Friedkin aborda a questão faz o final do longa parecer menos um patriotismo cego e mais o luto por um espírito perdido.

É uma escolha genuína, e um tanto quanto ousada na pós-modernidade do sarcasmo e cinismo, mas The Caine Mutiny Court-Martial funciona exatamente porque entende a troca de um pelo outro, na venda da alma. Algumas ideias podem ser antiquadas, mas o sucesso do longa vem exatamente de reconhecer esse fardo, e ainda conseguir tirar da morte dele uma tristeza. Talvez, então, esse seja um filme sobre perda.

Nota da Crítica
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Guilherme Jacobs

The Caine Mutiny Court-Martial

Drama
Guerra
Guerra & Política
1h 48min | 2023
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