
Não! Não Olhe! - Crítica do Chippu
Jordan Peele constrói um grandioso espetáculo sobre o poder de construir (e apagar) imagens

Crítica
Enquanto assistia a Não! Não Olhe! (a partir de agora chamado apenas Não Olhe nesta crítica, para economizar umas exclamações), a palavra mais frequente em minha mente era “apagamento". Jordan Peele começa seu novo filme, um divertidíssimo blockbuster de ideias e proporções gigantes, enfatizando a primeira imagem em movimento, capturada por Eadweard Muybridge no fim do século 19. A origem do cinema, digamos. Nela, um homem negro monta um cavalo por alguns segundos. A partir desta figura, indústrias, lendas e culturas surgiram. O nome do cavaleiro ali registrado, porém, se perdeu com os anos. Foi apagado.
Não Olhe é um filme sobre o que Hollywood, e nossa sociedade ocidental por inteira, apaga. Negros, polêmicas e até mesmo animais (outro elemento essencial nos frames de Muybridge) são jogados debaixo do tapete, deixados no esquecimento, enquanto buscamos as imagens mais chocantes, audaciosas e polêmicas, visões empoderadas pela cultura de redes sociais, de TMZ e Reality TV.
Como cantou Bo Burnham, viver na internet atual vai, em alguns segundos, de desenhos de Harry Potter a homens decapitados. Há um pouco de tudo, o tempo todo. Medimos nossas vidas por escândalos esculpidos em pixels. Num rolar de dedos, vamos de presidentes atacando eleitores a um gif de coalas. Nosso senso de espetáculo está deturpado. “Lançarei sobre ti imundícias, tratar-te-ei com desprezo e te porei por espetáculo,” diz Naum 3:6, verso escolhido por Peele para abrir Não Olhe. Somos um show de horrores.
Neste filme, o homem no cavalo é o antepassado de OJ e Emerald Haywood (Daniel Kaluuya e Keke Palmer), e os dois treinam cavalos na mesma Hollywood que deve sua existência ao tataravô destes irmãos. A mesma Hollywood que o apagou, e agora faz o mesmo com estes animais. É tão mais fácil com CG.
Seu rancho está em decadência desde a inesperada e misteriosa morte do pai (Keith David), e então algo acontece. Numa noite, OJ olha para as nuvens e vê algo parecido com um disco voador. Jordan Peele sendo quem é, a resposta, é claro, é mais complexa e não será estragada nesta crítica, mas a coisa é o suficiente para fazer os Haywoods decidirem entrar neste jogo de imagens. Com a ajuda do técnico de informática xereta Angel (Brandon Perea, engraçado sem se tornar irritante) e, eventualmente, do premiado diretor de fotografia Antlers Holst (Michael Wincott, cuja voz é um tom musical), eles buscam registrar o mistério, faturar em cima disso e, como Emerald diz, criar algo que não pode ser apagado.
Como Corra e Nós, Não Olhe possui uma série de ideias em sua mente, mas é o menos óbvio dos três filmes de Peele. O diretor não nos oferece uma premissa facilmente resumida numa simples frase ou tema, e sim ampliar o escopo para nosso relacionamento com uma das coisas mais poderosas e mais importantes da vida moderna. A imagem. Paralelo ao argumento, o diretor constrói um espetáculo — este é, definitivamente, um blockbuster, e dos mais empolgantes — refrescantemente old-school com as mais avançadas ferramentas. Não Olhe é um filme de faroeste misturado com suspense extraterrestre, e o próprio design do elemento nos céus — este parecer, à primeira vista, ter saído de Além da Imaginação nos anos 1950 — mostra Peele nos chamando de volta para o princípio cinematográfico, quando uma audiência podia ser levada pela imaginação a acreditar no mover de uma locomotiva. O cineasta argumenta que ao apagarmos a importância das imagens e banalizamos o absurdo, esquecemos o verdadeiramente extraordinário.
Essa temática, assim como sua perspicaz observação sobre o nosso relacionamento com animais e criaturas, usando-as como ferramenta neste circo de entretenimento, é bem representada através de Jupe (Steven Yeun), uma ex-estrela de TV que, quando criança, foi parte de uma sitcom cancelada depois de um incidente trágico envolvendo um chimpanzé. A gravação deste momento foi apagada, e hoje ele o monetiza vendendo a história de diversas maneiras. A tragédia ocorreu em decorrência do apagar do macaco, do maltrato que Jupe agora repete de maneira indireta. Vizinho dos Haywoods, ele também tem interesse monetário no fenômeno visto nas nuvens deste vale californiano, mas sua proposta parte de um lugar ainda mais ganancioso. Ele acredita ser capaz de dominá-lo. Ele vai tratá-lo como o seu antigo canal de TV tratou o chimpanzé.
Peele tropeça um pouco ao não examinar mais a fundo as motivações de OJ e Emerald, e especialmente de não diferenciá-las das de Jupe. Ambos querem lucrar com o sobrenatural. Como, exatamente, eles são distintos? Por que os irmãos são tratados com protagonismo enquanto Jupe se torna uma espécie de conto de advertência? A resposta talvez venha nas diferentes maneiras com a qual estes dois lados querem exibir sua descoberta. O personagem de Yeun, que atua como se estivesse mascarando uma escuridão perturbadora com um sorriso de inocência enganoso, se coloca como superior e segue um caminho egocêntrico, literalmente se colocando como apresentador de uma atração, OJ e Emerald simplesmente querem apontar uma câmera e fazer um registro. Eles nos mostrarão a verdade, e a verdade os libertará. O final do filme, contudo, parece ir na contramão desta ideia. Uma sequência de pura adrenalina e intensidade, ela ganha tons sombrios quando o destino deste mistério voador é revelado. Talvez esta seja a ideia. Talvez não haja salvação quando se trata da ganância e crueldade humana.
É duro não poder entrar em detalhes sobre o elemento nos céus, mas não é spoilers dizer que ele se torna a representação dos diversos pensamentos de Peele. Quando sua verdadeira natureza é revelada, e o design artístico de Não Olhe alcança níveis dignos de um anime de Hideaki Anno, então os paralelos traçados pelo diretor se tornam mais claros. A dinâmica entre olhar e desviar os olhos, entre o fotógrafo e o fotografado, ganham mais camadas.
Demora, é verdade, um pouco para chegar lá. Felizmente, enquanto o texto de Peele nos puxa num nível intelectual, Kaluuya e Palmer, ambos dotados de medidas iguais (e manifestações praticamente opostas) de um magnetismo simultaneamente cotidiano e único. Ele, como homens mais acostumados com a companhia de animais, se torna um ser de poucas palavras e olhares marcantes, e ela esconde as inseguranças através de muitas falas e fisicalidade expressiva, tornando seus momentos de silêncio e imobilidade ainda mais poderosos. Desde o começo do desnecessariamente longo filme (são só 2h15 de duração, mas há gordura), os dois nos arrastam para dentro da casa dos Haywoods e usam seus dotes cômicos para deixar a jornada lúdica e imprevisível. Peele, veterano da comédia, mais uma vez alia a diversão com a profundidade, recompensando espectadores atentos e engajados, sem nunca deixar de, em primeiro lugar, construir um filme. Sua maestria das mais básicas ferramentas do meio — o enquadramento, o corte, a luz — é palpável. Como o líder de uma orquestra, ele cria uma composição cuja melodia é imediatamente arrebatadora, mas cujo verdadeiro poder se revela quando prestamos atenção em como cada instrumento contribui para a obra.
Se tratando de um filme sobre a construção de imagens, era essencial ter um olho grandioso por trás das câmeras, e o diretor de fotografia Hoyte Van Hoytema — referência quando se trata de IMAX — aproveita todo o espaço do quadro para trazer à vida as visões encantadoras e temíveis de Peele. Nossas cabeças se inclinam e nossas pupilas dançam de um lado para o outro da tela, enquanto arregalados procuramos ver o que está por trás, em volta e especialmente acima dos personagens. Melhor visto nas telonas (o filme é inteiramente gravado com câmeras IMAX), Não Olhe acaba deixando o texto se misturar com o próprio formato, e se torna um poderoso argumento a favor de sua própria tese. Se Peele queria fazer um longa-metragem sobre o poder de imagens, então nada é melhor do que torná-lo, em si mesmo, uma prova disso.
A fotografia, assim como a trilha Michael Abels e a montagem de Nicholas Monsour, adicionam cor, ritmo e clima ao filme, nos levando da aventura para o suspense, do terror para a comédia, sem titubear. Peele navega estas águas com mão firme, nunca perdendo de vista seus dois objetivos. Ele é um showman. Um cujo espetáculo sempre se origina em ideias, sempre as reforça e sempre as expressa. Em Não! Não Olhe!, enfim armado com os recursos e escopo dignos de seu talento, ele constrói talvez seu magnum opus, a principal evidência do poder do meio onde ele se tornou algo impossível de se apagar, e de sua capacidade de direcionar este poder. Peele nos convida a ter discernimento, a considerar as imagens à nossa frente. Seus poderes e significados, seus criadores e significados. Ele aponta a câmera. Ele nos mostra algo.
4.5/5

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