Cannes: For the Sake of Peace - Crítica do Chippu

Cannes: For the Sake of Peace - Crítica do Chippu

Documentário produzido por Forest Whitaker retrata a busca por paz no Sudão do Sul

Guilherme Jacobs
17 de maio de 2022 - 8 min leitura
Crítica

CANNES: Forest Whitaker é o grande nome do primeiro dia do Festival deCannes de 2022. Premiado com uma Palma de Ouro honorária, o ator vencedor de Oscar é a única face conhecida no documentário For the Sake of Peace, exibido na manhã do primeiro dia do evento. Produzido por Whitaker e com destaque para o trabalho de sua organização não-governamental com missão de trazer paz ao Sudão do Sul, o longa-metragem dirigido por Christophe Castagne e Thomas Sametin acompanha as jornadas de Nandege Magdalena e Gatjang Dagor em seus trabalhos para ajudar as comunidades do país mais jovem do mundo.


As histórias têm situações vastamente diferentes. Nandege é uma jovem envolvida diretamente nas negociações de paz dentro do Sudão do Sul, que apenas dois anos após sua independência em 2011 se viu no meio de uma guerra civil entre facções representadas pelo presidente e vice-presidente da nação africana. Nesse ambiente hostil, comunidades armadas florescem e transformam diferentes áreas em mini zonas de guerra, como é o caso das tribos dos Logir e dos Didinga. Ambos grupos vendem leite de vaca, e nas temporadas de seca partem para a região entre suas terras, onde há rios e água, não só para alimentar os animais como também para roubar gado dos rivais, deixando para trás uma trilha de corpos, sangue e vingança. O objetivo de Nandege é acabar com isso.


Já Gatjang é juiz de futebol dentro de uma POC - sigla para área de proteção de civis - e trabalha ensinando a criançada a jogar bola, entender as regras do esporte e apitando partidas entre os times juvenis do país. Se a missão de Nandege envolve cruzar repetidamente com guerrilheiros armados de AK-47, o momento mais tenso da de Gatjang é vê-lo ouvindo pelo rádio à final da Copa Nacional por União e torcendo para a equipe da POC conquistar o troféu.


O contraste, inicialmente, é um pouco frustrante. Em apenas alguns momentos, Nandege já está conversando com o Kumol, o líder carismático dos Logir, uma das figuras mais fascinantes do documentário, andando com um grande sorriso e uma AK-47, e casualmente falando de como em cinco anos ele deve ter matado mil pessoas. Boa parte da jornada de Gatjang envolve vê-lo apitando futebol. Quando cortamos das tribos para a POC, For the Sake of Peace parece tirar o pé do acelerador. Com o tempo, porém, os diferentes tons das duas histórias se complementam e misturam de maneira agradável, retratando lados opostos e paralelos da busca por paz. Num, a nação precisa perdoar os pecados contra si mesma. No outro, ela aprende a sonhar.


No caso de Nandege, a casualidade com a qual pessoas armadas com rifles passam por seu caminho e mencionam tiroteios recentes mostra o quão enraizada está a violência no cotidiano dessas comunidades. Em determinado momento, o líder dos Didinga revela - quase como curiosidade passageira - ser irmão da esposa de Kumol, mas essa conexão pouco significa - logo depois, ele simplifica os conflitos entre os dois povos como algo rotineiro. "Eles vêm e roubam nosso gado. Depois rastreamos eles, e os matamos." O ar de ameaça e tensão, porém, se desfaz no clímax desta narrativa, quando Nandege enfim media a reunião de trégua entre as duas tribos, onde apesar de algumas acusações exaltadas e dedos apontando para o outro, nunca há um sentimento de que aquela tentativa de paz será frustrada (este é, afinal, um filme financiado por uma ONG. Ela quer mostrar resultados). Os debates não refletem a animosidade histórica entre os dois lados, é até difícil não imaginar se os argumentos mais intensos ficaram na sala de edição. Há, pelo menos, momentos marcantes nos quais os habitantes expressam a exaustão de viver sempre sobre ameaça. "O passado é como vômito. Você o apanharia e comeria de novo?" um deles declara, incentivando os guerreiros a abandonarem a vingança.


Mas em termos de situações e frases, nada supera ver Gatjang interagindo com os jovens jogadores de futebol do Sudão do Sul. Se o lado de Nandege conta com as imagens mais marcantes, aqui temos falas e situações divertidas. Quase acidentalmente, For the Sake of Peace se transforma num ótimo documento sobre o valor do futebol em países com poucos recursos. Crianças e adolescentes estão sempre vestindo uma camiseta de clubes europeus, independente do quão velha ela seja, e repetidas vezes ouvimos sobre sua vontade de um dia representar a nação na Copa do Mundo. Ali, eles falam, o mundo saberá que eles existem. Na cena mais engraçada, Gatjang oferece uma camisa do Real Madrid com número 7 (de Cristiano Ronaldo) para um dos meninos. "Eu torço pelo Barcleona," ele responde, levando a audiência de Cannes às risadas. Esses sentimentos - o amor à camisa, o sonho de jogar diante do planeta inteiro - são universais, e tornam as cenas dentro da POC um verdadeiro deleite.


Ao todo, For the Sake of Peace faz um bom trabalho de retratar cada uma de suas figuras - dos meninos inocentes no campo de futebol aos perigosos líderes de guerreiros tribais - como seres humanos, refletindo diferentes facetas de cada um. O filme, infelizmente, não vai a fundo no interior emocional ou psicológico de nenhum dos seus protagonistas, mas os trata com carinho e cuidado. Esses adjetivos, entretanto, não podem ser aplicados às cenas com Whitaker que abrem e fecham a obra. O trabalho de sua fundação é admirável, claro, mas sua presença no documentário tem o tom de uma busca por reconhecimento e aprovação, e numa delas ele faz comentários cuja natureza é reducionista - comparando as comunidades com gangues de bandidos. Claro, na prática, há semelhanças. Certamente há culpa nestes homens de violência, mas depois de 90 minutos tentando explicar a razão desses conflitos violentos, mostrar honestamente as pessoas envolvidas, ver o ator hollywoodiano falando para o mundo sem o mesmo cuidado que seu próprio filme exibe é, no mínimo, estranho.


3/5

Nota da Crítica
Guilherme Jacobs

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