Drive My Car - Crítica do Chippu

Drive My Car - Crítica do Chippu

Arte transcende a metalinguagem para questionar (e confortar) personagens e audiência no épico de Ryusuke Hamaguchi

Guilherme Jacobs
18 de março de 2022 - 12 min leitura
Crítica

Talvez isso já tenha acontecido com você. Depois de passar por algo significativo em sua vida - um coração quebrado, uma descoberta, uma paixão, o luto, uma viagem marcante - algum elemento artístico se torna maior e mais importante. Seja o enredo de um filme, a letra de música, um mero parágrafo de um livro ou algo ainda menor, como a fala de um personagem num episódio televisivo. Aquela sensação idiossincrática de que a mensagem se tornou específica demais para ser uma coincidência. Mais que se ver na história, você se sente observado por ela, questionado e confortado. Isso acontece, repetidas vezes, com Yûsuke Kafuku (Hidetoshi Nishijima), protagonista do seminal Drive My Car do diretor e roteirista japonês Ryusuke Hamaguchi. Depois da morte inesperada de sua esposa, Oto (Reika Kirishima), apenas alguns dias depois de vê-la o traindo, toda a arte cercando Yûsuke ganha uma camada mais.


Adaptando a história homônima de Haruki Murakami na coletânea Homens Sem Mulheres (e com pitadas de mais dois contos do livro - Scheherazade e Kino), Hamaguchi constrói uma jornada sobre a tentativa muitas vezes frustrada dos seres humanos de tentar encontrar a razão por trás das atitudes de outras pessoas, de sondar o coração de quem nos ferem, e como arte pode não só servir como tradutora dessa complexidade, mas também de enfermeira da nossa dor. Um renomado veterano do teatro cujo método - cada ator de suas peças fala no seu idioma natal, com um telão atrás do palco traduzindo o texto para múltiplas línguas - evoca curiosidade e aplausos, Yûsuke encontrou nas histórias a aparente salvação do seu casamento. Após o sexo, Oto, que um dia foi atriz, começa a narrar uma trama. Na manhã seguinte, sua memória já não é a mesma, mas Yûsuke a lembra dos detalhes, a partir dos quais ela constrói roteiros para televisão. Essa dinâmica ajudou os dois a superar a morte da filha, e parece sustentá-los, pelo menos até a semana da morte de Oto.


Dois anos depois, Yûsuke se vê incapaz de atuar, especialmente na adaptação teatral de Tio Vânia, de Anton Chekhov. Ele sabe todas as falas do titular Vânia (Yûsuke encontra refúgio ao dirigir pela cidade ouvindo uma fita cassete de Oto lendo diálogos da peça para ajudá-lo a praticar e decorar), mas agora elas são afiadas demais. Chekhov, nosso protagonista diz mais tarde, arrasta seu verdadeiro eu para fora. Agora, é muito difícil ouvir, na gravação, Oto confessando erros de personagens Por outro lado, através de Vânia, Yûsuke pode declarar a infidelidade da mulher. Eventualmente, ele aceita o convite de dirigir uma adaptação da mesma obra usando seu método multi-linguístico. No elenco, há atores falando em mandarim, inglês, japonês e até mesmo linguagem de sinais sul-coreana, como no caso Yoon-su (Jin Dae-yeon), dona de algumas das cenas mais lindas de todo o filme, incluindo uma na qual ela realiza o teste para o papel com uma carga emocional que, além dispensar o falar, cresce através do silêncio. Na cena escolhida para este teste, sua personagem alerta o protagonista (de peça, mas também do filme em si) sobre o fato de também ter um passado trágico. Ele não é o único cicatrizado aqui. Depois, num jantar, Yoon-su revela suas próprias perdas - em outra exibição do talento avassalador dessa atriz - a declaração anterior ganha ainda mais relevância. Nossos olhos, e os de Yûsuke, começam a abrir.


Mais tarde, Yoon-su e Janice Chang (Sonia Yuan), uma em linguagem de sinais e outra em mandarim, ensaiam um emocionante diálogo de Tio Vânia - retratado por Hamaguchi de maneira arrebatadora - e se conectam num nível pessoal e verdadeiro apesar da barreira de idioma. Assim, o método de Yûsuke, e a mensagem maior de Drive My Car, parecem ser destacadas por Hamaguchi. Ao prestar atenção apenas em suas falas - afinal, em alguns casos eles nem compreendem as dos outros - os atores conseguem penetrar de forma mais profunda na emoção do texto, encontrar significados ocultos e responder à altura através da atuação, comunicando sentimentos cuja natureza dispensa tradução. Somos convidados pelo cineasta a adotar o mesmo olhar perceptivo. Seu coadjuvante no palco vai entender. Nós vamos entender. Arte, Hamaguchi argumenta dentro e fora da tela, é a língua universal. Assim, Drive My Car adquire uma natureza além do metalinguístico. Ele transcende seu idioma, expressa suas ideias no texto e subtexto, convidando personagens e audiência a aprofundar sua relação com a arte.


Yûsuke precisa fazer essa viagem introspectiva, mas se recusa a dar o primeiro passo. Seu foco está no mistério deixado para trás pela morte de Oto. Por que ela o traiu? Por que ele não era suficiente? Numa determinada noite, ao sair para beber com um dos membros da trupe, Takatsuki (Masaki Okada), um jovem astro japonês cuja carreira está em decadência por suas atitudes atrás das câmeras, Yûsuke é convidado a deixar para trás essa busca por respostas. A proposta de analisar o coração de outra pessoa é tolice, afirma Takatsuki, enquanto os dois conversam no banco traseiro do Carro. Só podemos olhar para dentro de nós mesmos. Se quisermos realmente entender alguém, é preciso primeiro nos examinar. Novamente, Hamaguchi alia os acontecimentos à temática de seu roteiro, escrito junto com Takamasa Oe. Esse é o método por trás da direção de Yûsuke; Compreenda a essência de sua fala, e você conseguirá entender a alma do outro ator. Em seu próprio trabalho, o personagem principal recriou a odisseia pela qual ele deve, agora num nível pessoal, passar. Até porque, além de ser o escolhido para o papel de Vânia na peça - efetivamente se tornando um substituto de Yûsuke - Takatsuki é o homem com o qual Oto traiu o marido.


Nesta mesma noite de viagem pelas ruas japonesas, Takatsuki revela ter ouvido uma história de Oto (certamente após o sexo). Yûsuke está familiar com a narrativa, sua esposa também o contou, mas o jovem é o único que sabe a conclusão. Nesta, a protagonista imaginada por Oto e provavelmente inspirada na própria narradora, confessa um assassinato. “Eu o matei,” o ator diz, servindo como emissário da mulher, aparentemente admitindo a traição mesmo após a morte e simultaneamente admitindo seus próprios crimes. Mas Yûsuke ainda se vê preso, sem coragem de assumir o papel de Vânia quando Takatsuki é forçado a deixar a peça, sem coragem de encarar o próprio coração.


Havia uma terceira pessoa no carro naquela noite. Misaki Watari (Tôko Miura) é uma jovem de 23 anos - a idade que a filha de Yûsuke e Oto teria - com suas próprias cicatrizes. Literais e figurativas. Selecionada pela organização do teatro para dirigir Yûsuke enquanto ele trabalha na peça, Misaki é fechada, revela muito pouco sobre si e esconde suas emoções, mas ao ouvir os diálogos de Yûsuke com Oto através dos ensaios de Vânia na fita cassete, e testemunhar as revelações feitas pelos passageiros, ela começa a se abrir e acompanhar o protagonista nessa jornada, até se tornar o fator determinante na conclusão dramática do filme. Até aqui, Hamaguchi adota uma direção mais interiorizada, com o crescimento dos personagens se manifestando nos menores detalhes, Eles estão no implícito, no não falado. Em contraponto está a fotografia de Hidetoshi Shinomiya, combinando closes dentro do veículo com planos abertos de tirar o fôlego deste veículo tão importante atravessando as avenidas japonesas, belíssimos visuais que transformam a locomoção na viagem dos personagens, fisicamente indo de ponto a ponto na sua busca por respostas.


Mas, como fez em outra de suas obras - Asako I & II - Hamaguchi sente a necessidade de exteriorizar o conflito dentro do coração dos personagens em cenas climáticas. Em discursos emocionais que, apesar de bem escritos, não combinam com a abordagem intimista do diretor, estas acontecem no local mais visualmente marcante de toda obra, literalmente aos pés de uma tragédia de larga escala, dando à sequência um aspecto melodramático desnecessário. A fantástica atuação de Nishijima e Miura, os dois melhores atores do filme junto com a força da natureza que é Dae-yeon, mantém o impacto emocional. Mas, por já termos que aceitar a constante repetição da mensagem central da narrativa - uma tarefa facilitada pela sutileza de Hamaguchi - ouvir o tema principal sendo martelado de forma mais audível tira um pouco o encanto. O efeito se repete, de forma ainda mais estranha, num epílogo situado em tempos de COVID no qual o carro de Yûsuke e uma cicatriz de Misaki são usados pelo diretor para literalizar o fim dos seus respectivos arcos. Hamaguchi parece querer sublinhar as metáforas, explicas as imagens, deixando de confiar na própria tese de Drive My Car. Deixe a arte falar.


Ao longo de todo o filme, a arte fala. É irônico, ou mesmo adequado, que Drive My Car seja o único indicado a Melhor Filme do Oscar de 2022 cujo principal idioma não é inglês. Sua declaração de arte como laço universal entre pessoas, a ferramenta através da qual Yûsuke - e muitos de nós - encontramos o caminho para a autorreflexão necessária, se torna ainda mais grandiosa ao ser colocado num palco internacional, discursando para todos os povos o valor, o poder e até a necessidade das histórias ao nosso redor. O texto questiona, demanda uma resposta, Yûsuke diz para seus atores. Qual será a nossa?


4.5/5

Nota da Crítica
Guilherme Jacobs

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