
Bergman Island - Crítica do Chippu
Mia Hansen-Løve parte em jornada metalinguística pela casa de Ingmar Bergman

Crítica
Ao colocar o nome de um dos maiores cineastas no título de seu novo filme, a diretora francesa Mia Hansen-Løve está convidando comparações e expectativas. Bergman Island usa Ingmar Bergman mais como um ponto de partida, um esboço e uma percussão de fundo para sua exploração triplamente metalinguística do romance entre cineastas visitando a ilha de Fårö, na Suécia. O local é creditado como fonte de inspiração para o diretor sueco responsável por O Sétimo Selo e Morangos Silvestres, eventualmente se tornou sua residência.
Em menos de 30 minutos de filme - logo no começo da jornada da roteirista Chris (Vicky Krieps) e seu parceiro, o diretor Tony (Tim Roth), em busca de inspiração criativa e salvação para um casamento esfriado - ouvimos Quando Duas Mulheres Pecam e Cenas de um Casamento mencionados, eventualmente vendo o casal no quarto da obra sobre divórcio, e até testemunhamos algumas cenas de Gritos e Sussurros. Com aproximadamente 500 habitantes, a ilha respira Bergman. Há um centro dedicado ao diretor e uma semana para celebrar sua vida e obra, algo aparentemente irônico visto a constante adoração do lugar. Há até um Bergman Safari.
Chris se incomoda com a aparente incoerência presente em Fårö. Como pode um local tão lindo ter inspirado Bergman a criar obras tão depressivas? A filmografia do sueco é marcada por profundo senso de agonia, se revoltando e clamando a Deus quase na mesma medida, apresentando uma busca de significado no vazio cujos resultados são geralmente nulos e depressivos. Bergman reconhecia o espírito humano, mas não tinha muitas coisas boas a dizer sobre ele. Em determinado momento, Tony lembra a roteirista sobre como a ilha deve ser fria e morta no inverno, mas o culpado pelo aspecto niilista das obras gravadas ali parece ser o próprio Bergman, descrito por alguns habitantes como uma pessoa antipática e imoral. A protagonista questiona a capacidade de um humano de ter grandes obras e uma boa vida familiar ao saber do histórico de Ingmar. Ele gerou nove filhos com seis mulheres diferentes, deixando a criação de todos a cargo das mães. Tony, por sua vez, não parece se incomodar com a ideia.
Roth interpreta com a frieza necessária, sem esconder o intelecto de Tony mas sempre reforçando suas sombras. Seus momentos de afeto são genuínos o suficiente para alcançar Chris, mas nunca honestos ao ponto de realmente acreditarmos na sua boa intenção para com a parceira. Ela, por sua vez, insiste em enxergar a ilha e o relacionamento por outro viés, preferindo passeios com figuras locais e encontros acidentais aos tours programados, e Krieps traz toda a vulnerabilidade da mulher à cena, baixando sua guarda nos momentos certos para entrarmos no íntimo abalado e em busca de inspiração para um novo roteiro.
A chama eventualmente chega. É impossível separar Bergman Island do relacionamento agora encerrado de Hansen-Løve com o diretor francês Olivier Assayas, como também é impossível não enxergar Chris e Tony na história contada dentro da história. O novo filme da personagem de Krieps acompanha Amy (Mia Wasikowska) e Joseph (Anders Danielsen Lie), dois jovens suecos cujo histórico de namoro e amores retorna à superfície num reencontro em Fårö, durante o casamento de uma amiga dos dois.
Assistimos ao filme dentro do filme quando Chris inicia a narração, e as semelhanças e contrastes só aumentam. Nesta dupla ficção, há um clima mais romântico, digno de uma estreia indie no festival de Sundance, momentos de maior explosão emocional e um acabamento tanto etéreo quanto hipster. Aqui há possibilidade e inocência, não o fatalismo de Bergman. Como Chris e Mia, Amy é uma cineasta cuja obra mais recente é sobre sua vida amorosa, e cujo interesse em Bergman serve como cataclisma para uma exploração mais profunda de seus sentimentos em direção ao homem com quem cada uma compartilhou o coração e a cama.
Se há algo Bergman-iano em Bergman Island, é como Hansen-Løve evita cair em clichês dramáticos de grandes confrontações e discursos do casal, preferindo observar as coisas invisíveis rodeando o casal principal (palavras usadas pelo próprio Tony para descrever seu novo filme, certamente uma história envolvendo mulheres de maneira questionável, a julgar pelo que é deixado implícito sobre o personagem de Roth) com maturidade e distanciamento. Dentro do roteiro de Chris, porém, há uma atmosfera mais esperançosa e viva. Em Amy, ela cria a viagem que desejava estar, as conversas, interações e revelações tão sonhadas pela escritora, sua resposta à frieza de Tony. Talvez a resposta de Hansen-Løve a Assayas. Certamente a resposta de todas a Bergman. Parte inspiração, parte revolta.
Muito disso poderia cair no óbvio, mas a direção do filme segura essas metáforas no reino da sutileza. Hansen-Løve prefere abaixar a intensidade emocional de diversas cenas, deixando as paixões e motivações num volume baixo, exceto quando o expressar desses conceitos em alto e bom som só reforçará o contexto interligando as três histórias aqui presentes; como um efeito dominó entre as três narradoras de Bergman Island, cada uma transferindo suas dores e esperanças para a próxima. Neste processo, as parábolas se tornam mais claras e reveladoras sobre o íntimo de quem as gerou.
Bergman Island, então, se firma não na representação do ciclo de arte e vida imitando uma à outra, mas sim na reflexão da relação inseparável entre as duas, seja nas similaridades trágicas ou nas rebeldes discrepâncias de ambas. Às vezes um autor procura recriar sua experiência, mas é comum, também, vermos a ficção usada para catarse.
Em determinado momento, Amy corre nua em direção à praia depois de uma madrugada de bebidas e sorrisos. Seus amigos, incluindo Joseph, a acompanham alegres e empolgados, mas é perceptível como a atitude dela, e a de Chris ao escrever a cena, é uma tentativa de forçar uma falsa espontaneidade, de afirmar seu bem-estar e liberdade como forças persistentes mesmo diante do distanciamento dos homens. Este é um dos exemplos de como Bergman Island nos revela, simultaneamente, verdades sobre três mulheres, suas histórias e desejos. O peso dessas descobertas cai, em grande parte, sobre os ombros de Wasikowska. A atriz australiana está no fim dessa linhagem, mas se mostra constantemente à altura do desafio de suas criadoras, escolhendo cuidadosamente como interpretar cada cena e adicionando camadas e mais camadas de contexto ao desenrolar de sua personagem. É uma das atuações mais interessantes e complexas do ano todo, especialmente quando o epílogo de Bergman Island se desenrola.
É com essa profundidade metalinguística que Hansen-Løve encerra esta grande obra, misturando fato e ficção ao revelar as inspirações por trás dos personagens de Chris e nos levando a considerar quem fez o mesmo pela cineasta. Verdade e fantasia se entrelaçam em Bergman Island, assim como devem ter feito com o artista cujo nome gerou este título.
Nota: 4.5/5
Bergman Island foi visto pelo Chippu como parte do Vancouver International Film Festival (VIFF).

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