Apollo 10 e Meio - Crítica do Chippu

Apollo 10 e Meio - Crítica do Chippu

Richard Linklater usa animação para misturar realidade e sonhos em seu novo filme

Guilherme Jacobs
4 de abril de 2022 - 6 min leitura
Crítica

Eu tenho uma memória totalmente falsa da minha infância. Quando eu e minha irmã éramos criança, meu pai, na época policial militar, foi transferido pro interior de Pernambuco e nós moramos em alguns lugares diferentes por lá. Na minha mente, um deles foi uma casa de palha na beira da estrada, rodeada das plantações de trigo vistas dirigindo por lá. Só uma casa. Sem mais ninguém por quilômetros e quilômetros. Mais velho, eu nem precisei consultar meus pais para saber matar a charada: isso era fruto da minha imaginação. Em Apollo 10 e Meio, novo filme animado de Richard Linklater na Netflix, algo parecido acontece.


Inspirado nas memórias (e sonhos) de Linklater de sua infância em Houston, Texas, Apollo 10 e Meio acompanha a lembrança de Stan (Milo Coy como criança e Jack Black como versão adultana narração) do verão de 1969, quando além de se divertir com seus irmãos e colegas, o garoto acompanhou a missão do Apollo 11 e viu Neil Armstrong pisando na lua. Ele também nos conta como naquele mesmo ano, dois agentes da NASA (Zachary Levi e Glen Powell) o recrutaram para a missão secreta Apollo 10 e Meio. Eis a situação: os engenheiros construíram um cockpit de foguete pequeno demais, então era necessário treinar uma criança para ser astronauta e ir à lua antes de Armstrong.


Soa como uma loucura né? Isso, claro, não aconteceu. Mas eu também não morei numa cabana de palha isolada na beira da estrada. Porém, assim como Stan se lembra do seu tempo na NASA, eu me lembro disso.


Diferente de outros filmes inspirados nas memórias de cineastas (Roma de Alfonso Cuáron, Belfast de Kenneth Branagh), Apollo 10 e Meio está menos preocupado em recriar uma época e local e mais em capturar a sensação de estar lá, de ter vivido aquilo. Atmosfera é a prioridade. A mistura de sonhos com lembranças, de realidade e fantasia, de fato e ficção. Linklater oferece uma narrativa simples, charmosa e divertida para nos levar de volta à sua infância, quando todo mundo no subúrbio de Houston trabalhava na NASA, quando havia apenas três canais na televisão e o maior desejo da criançada era ir para o Astroworld, parque temático da cidade.


A narração de Black, aqui usando uma voz suave e convidativa, é constante durante o filme inteiro. Depois de um breve começo preparando a viagem à lua, Stan começa a contar-nos todos os detalhes da vida de um menino branco de classe média nos anos 60: seus programas favoritos incluíam Além da Imaginação e Batman, sua irmã mais velha estava apresentando os Beatles para a família, sua mãe às vezes esquecia de descongelar os sanduíches para o almoço, uma de suas avós era cheia de teorias da conspiração, e assim vai. Cada detalhe do cotidiano deles é cuidadosamente desdobrado. Isso, sem dúvidas, frustrará aqueles em busca de uma história tradicional e linear. Não há conflitos, antagonistas, mudanças ou drama. A animação se mantém em estado perpétuo de tranquilidade.


Apollo 10 e Meio é como um álbum de colagens, aberto e folheado durante uma conversa com familiares relembrando momentos da juventude. A própria viagem à lua é uma delas, recebendo o mesmo tratamento e atenção do filme que, por exemplo, a vida escolar de Stan. Por um lado, essa abordagem impede Linklater de demonstrar suas melhores qualidades como cineasta; Não há diálogos envolventes tomando nossa atenção ou personagens memoráveis com os quais podemos nos apaixonar. Apollo 10 e Meio, constantemente, nos mantém à certa distância. Aqui, somos apenas ouvintes. Nunca somos convidados para dentro.


Isso, porém, o transforma num deleite. É prazeroso passear pelas memórias de Stan, percebê-lo descobrindo as complexidades do mundo (como, por exemplo, quando ele tangencialmente toca na guerra do Vietnã ou na pobreza de comunidades afro-americanas), é divertido ver a próxima aventura dos irmãos, e, no caso da missão espacial, é curioso ver os sonhos de um menino entrelaçados com o mundo verdadeiro. Nesse sentido, o uso da animação com rotoscópio foi uma escolha perfeita do cineasta, particularmente na hora de retratar a ida de Stan à lua.


Se Apollo 10 e Meio fosse live-action, ele teria ganho um aspecto de aventura Spielberg-iana com a ida do garoto à lua. Algo irreal. A animação por rotoscopia significa que atores como Levi e Powell terão seus rostos traduzidos para o desenho com o grau de realismo suficiente para enxergarmos os humanos por trás deles, mas impede o filme de virar realista demais. Linklater não quer aumentar nossa suspensão de descrença, ele não quer criar em nós a ilusão de que aquilo realmente aconteceu. Em nenhum momento temos a ideia de que Stan realmente foi um astronauta secreto. Foi um sonho, claro.


Stan, décadas depois, mistura sonhos e memórias. Ele provavelmente sabe da improbabilidade dessa narrativa. Quanto à minha, eu também sei. Mas às vezes a impressão de realidade é suficiente. Na neblina entre o fantasioso e a veracidade, encontramos as coisas inesquecíveis. Tenham elas acontecido ou não.


3.5/5

Nota da Crítica
Guilherme Jacobs

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