
A Queda do Céu: Doc brasileiro em Cannes é urgente ato de preservação
Dirigido por Eryk Rocha e Gabriela Carneiro, filme registra os costumes e crenças dos Yanomami

Crítica
Na cena mais assombrosa de A Queda do Céu, documentário brasileiro exibido na Quinzena dos Cineastas, uma das mostras do Festival de Cannes, um ancião da tribo Yanomami pergunta para os diretores Eryk Rocha e Gabriela Carneiro da Cunha: “o que vocês farão com esse filme? Vocês são nossos aliados?” É um questionamento que nasce como fruto de anos de devastação florestal perpetuada pelo homem branco, que no processo ameaça destruir não só toda a cultura desse povo nativo como também — se acreditarmos nas profecias do xamã Davi Kopenawa — todo o mundo.
Inspirado no livro de mesmo nome escrito pelo antropólogo francês Brian Albert e Kopenawa, com base em décadas de conversas entre eles, A Queda do Céu começa explicando de onde vem seu título. Na crença desses índios, o céu já caiu uma vez, e se os Yanomami forem extinguidos do mapa, ou se seu estilo de vida for inteiramente deixado de lado em favor de outros costumes, essa calamidade se repetirá. Cabe a líderes como Kopenawa evitar isso, e para isso eles precisam preservar os caminhos da tribo nas próximas gerações.
Nesse sentido, A Queda do Céu pode ser um grande aliado, já que o filme toma cuidado em registrar as práticas e rituais dos Yanomami com imagens efêmeras que beiram o surrealismo e capturam a atmosfera quase mística da vida na selva. O documentário, por exemplo, coloca em foco o reahu, um rito fúnebre através do qual todo traço de um xamã falecido deve ser removido da Terra, incluindo armadilhas que deixou na floresta, plantações e até suas pegadas. É através desse trabalho que o filme trata de outro esforço de apagamento, mas um muito mais danoso.
Em paralelo às alegrias das danças, rostos pintados e canções, A Queda do Céu pulsa com a raiva de um povo que se vê cada vez mais encurralado, cultural e fisicamente. Toques de português no meio do idioma indígena sugerem o que é confirmado por cenas como a de abertura, onde vemos um grande grupo de Yanomami caminhando numa estrada feita por invasores e, aos poucos, notamos elementos inesperados no quadro. Uma estampa da Gucci, uma camisa do Flamengo, um celular, uma arma.
A mesma estrada é revisitada pelo filme posteriormente. Dessa vez enquanto ouvimos Kopenawa falando do desmatamento e epidemias trazidos pelo branco, apenas três índios caminham no lugar, e o desaparecimento desse povo se torna palpável. O maior sucesso de A Queda do Céu está na sua capacidade de combinar os testemunhos e falas dos personagens com imagens que capturam a ambientação. Quando Kopenawa fala de conversar com espíritos através de sonhos, um reflexo de um menino na água do rio transforma o quadro num lindo e poético devaneio.
Mas se o filme é notável pela sua capacidade imagética nesses momentos, então igualmente importante é a ausência de certas cenas. Ouvimos, repetidamente, sobre a destruição da Amazônia, sobre os malditos garimpeiros e sobre Yanomami que viraram as costas para seu próprio lar em favor do dinheiro que vem daqueles que Kopenawa sabiamente rotula como “povo de mercadoria.” Nada disso, contudo, é exibido no filme, que tampouco se aprofunda nas tensões inerentes a esses debates. O livro ficou famoso pela profundidade dos discursos ali trabalhados. O filme pode ser visto como um guia visual.
Às vezes, como na supramencionada conversa com um idoso da tribo, Rocha e Carneiro constroem uma atmosfera densa o suficiente para compensar essas faltas, especialmente dada a intensidade de testemunhos como aquele, ou como os vários discursos de Kopenawa sobre a calamidade iminente. Esse clima apocalíptico entra em turbo quando A Queda do Céu insere uma montagem preto-e-branco de destruição e desastres, sejam estes causados pelo homem ou frutos de uma natureza desequilibrada. É um momento poderoso, que traça, sem muita graciosidade, uma linha direta entre a crença dos Yanomami e o caos da sociedade atual. Você pode não acreditar que a extinção desses índios está conectada aos eventos terríveis do cotidiano, mas é difícil descartar a capacidade deles de diagnosticar a realidade.
Quando ouvimos Kopenawa declarar apaixonada e desesperadamente como a titular queda do céu vai envolver a Terra em calor infernal, é difícil não pensar nas árvores cortadas e rios poluídos, e ainda que o filme não faça o melhor trabalho de investigar tudo isso, há um sentido claro na sua existência. Rocha e Carneiro foram questionados sobre suas intenções com os Yanomami, em como eles ajudariam a preservar a cultura daquele povo. A Queda do Céu, um ato de preservação urgente, é sua resposta. O documentário nos conta mais de uma vez sobre a importância dos sonhos, pois através deles os Yanomami conseguem “ver mais.” Este é um povo que entende o valor das imagens. Elas revelam, registram e eternizam coisas. O mesmo pode ser dito do filme.

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